A doutrina segundo o Evangelho

Só a vivência real da sã doutrina de Cristo pode tornar plausível o evangelho.

Cristian Cerda

“Então, chamando-lhe o seu senhor, disse-lhe: Servo malvado, toda aquela dívida te perdoei, porque me rogaste. Não devia tu também ter misericórdia do teu conservo, como eu tive misericórdia de ti? Então o seu senhor, zangado, o entregou aos verdugos, até que pagasse tudo o que lhe devia. Assim também meu Pai celestial fará convosco se não perdoardes de todo o coração cada um a seu irmão as suas ofensas” (Mat. 18:32-35).

Uma compaixão sem medida

Na parábola dos dois devedores, o primeiro deles devia dez mil talentos. Um denário era o salário de um dia de trabalho, e um talento equivalia ao que receberia um trabalhador em vinte anos. Dez mil talentos, então, seriam duzentos mil anos de trabalho, de maneira que aquela dívida era, literalmente, impagável.

O rei veio fazer contas com o seu servo, e como este não podia lhe pagar, «ordenou o seu senhor que o vendesse, e a sua mulher e filhos». Mas este homem se humilha e lhe suplica: «Tenha paciência comigo, e eu lhe pagarei tudo». E seu senhor, «movido de misericórdia», compadece-se ao vê-lo na desventura, e lhe perdoa a dívida.

Quando redescobrimos o evangelho, a primeira coisa que nos diz é que nós tínhamos uma dívida impossível de saldar. Custa a nós compreender o quão miseráveis e pecadores fomos, e o Senhor tem que ir nos mostrando isso, como ocorre com esta parábola.

Depois, este mesmo que foi perdoado, tinha um conservo que lhe devia cem denários, cem dias de trabalho. «Então o seu conservo, prostrando-se aos seus pés, rogava-lhe dizendo: Tenha paciência comigo, e eu lhe pagarei tudo» (V. 29). Entretanto, este que tinha sido perdoado de toda a sua dívida, «não quis, mas foi e o lançou na prisão, até que pagasse a dívida» (V. 30). «Então o seu senhor, zangado, o entregou aos verdugos, até que pagasse tudo o que devia. Assim também meu Pai celestial fará convosco se não perdoares de todo coração cada um a seu irmão as suas ofensas» (V. 34-35).

Quando suplicamos ao Senhor, ele teve de nós uma compaixão que não conseguimos dimensionar. Ele está nos explicando que, quando alguém nos ofende, é como se a dívida fosse umas moedas; mas o que nós devíamos eram milhares de milhões; mas ele se compadeceu. Que não fique nenhuma ofensa sem perdoar em nossos corações, não porque nos peçam perdão, mas porque o Senhor nos perdoou primeiro.

Quem é o meu próximo?

Esta é a primeira parábola que explica a comoção interna que opera de maneira tão extraordinária. A segunda é a parábola que relata Lucas no capítulo 10, quando o Senhor está diante de um um intérprete da lei, e lhe pergunta: «Mestre, que coisa hei de fazer para herdar a vida eterna?» (10:25).

É extraordinário como o Senhor vai respondendo, e como a partir de suas respostas, vai gerando em seus ouvintes uma compreensão diferente. Este intérprete da lei dizia isto para lhe provar. Mas o Senhor, longe de responder, faz-lhe outra pergunta.

«Disse-lhe: O que está escrito na lei? Como lês? Aquele, respondendo, disse: Amarás ao Senhor teu Deus com todo o teu coração, e com toda a tua alma, e com todas as tuas forças, e com toda a tua mente; e a teu próximo como a ti mesmo. E lhe disse: Respondeste bem; faça isto, e viverás. Mas ele, querendo justificar-se a si mesmo, disse a Jesus: E quem é o meu próximo?» (Luc. 10:26-29).

Jesus responde com a parábola do bom samaritano. Um viajante caiu nas mãos de ladrões e ficou ferido no caminho. Ali, um sacerdote e um levita passam de largo. «Mas um samaritano, que ia de caminho, veio perto dele, e vendo-o, foi movido de misericórdia» (v. 33). Viu-o e teve compaixão dele. E em seguida, «aproximando-se, atou-lhes as suas feridas, deitando nelas azeite e vinho; e pondo-o em sua cavalgadura, levou-o a hospedaria, e cuidou dele» (v. 34).

O intérprete da lei tinha perguntado: «Quem é meu próximo?». Entretanto, Jesus lhe diz: «Quem, pois, destes três te parece que foi o próximo daquele que caiu nas mãos dos ladrões?» (V. 36). Há uma diferença sutil, mas profunda. O Senhor não só responde quem é meu próximo, mas de quem eu sou o próximo, me pondo em condição de recebê-lo com compaixão.

Além da razão

A última é a parábola do filho pródigo, em Lucas. É a história do filho menor que pede toda a sua herança e a esbanja. Em seguida, ele se lembra da casa paterna. «Me levantarei e irei a meu pai, e lhe direi: Pai, pequei contra o céu e contra ti. Já não sou digno de ser chamado teu filho; faça-me como a um de seus trabalhadores. E levantando-se, veio a seu pai. E quando ainda estava longe, viu-o seu pai, e foi movido de misericórdia, e correu, e se lançou sobre o seu pescoço, e o beijou» (Luc. 15:18-20).

O pai não o olhou com desprezo, mas teve compaixão. Não se importou com o tempo passado, nem o que esbanjou, porque houve algo superior a todo raciocínio, que não pôde resistir. E quando viu o seu filho perdido voltando para casa, não pôde ficar indiferente, e correu para abraçá-lo.

O pensamento antigo

No pensamento imperante naquela época, era impensado atribuir a palavra compaixão a Deus. Para os gregos estoicos, a compaixão não cabia no coração de Deus. E o argumento era que, se alguém podia afetar as emoções de outro, então de alguma forma podia obter o controle do outro.

Os gregos não conheciam a compaixão, mas a apatia; mas esta não era uma simples indiferença. Diante de qualquer situação, não havia reação emocional. Mas, os cristãos falam de um Deus que se fez homem e que nessa condição teve compaixão. Para aqueles, isto era incompreensível. Para os estoicos, o fraco tinha que morrer, pois este mundo era dos fortes. A lei romana permitia a morte a toda criança que nascesse com defeito. O aborto e o infanticídio eram praticados regularmente.

A visão dos crentes

A igreja primitiva se encontrou diante de uma sociedade pagã que concedia o pátrio poder de praticar o infanticídio, o abandono e a venda dos filhos, e autorizava o aborto. Naquele mundo, a mentalidade era esta: só o cidadão livre é sujeito de direitos; não o escravo nem a criança.

Diante desses horrores, este era o conceito entre os crentes: «Nós, os cristãos, somos diferentes, porque não assassinamos os nossos filhos, nem dentro nem fora do ventre de suas mães. Vocês abandonam os seus filhos, logo que são nascidos, às feras e aos pássaros. Ou estrangulando-os, eliminam-nos com uma morte mísera. Há mulheres que tomando medicamentos sufocam em suas próprias entranhas o embrião destinado a ser uma criatura humana, e cometem infanticídio».

A prática do infanticídio terminou no ano 374 de nossa era, com o imperador Valentiniano, porque os cristãos recolheram a aqueles enjeitados e tiveram compaixão deles; movidos pela compaixão de Cristo, fizeram aquilo que ninguém mais teria feito.

E o que diremos da escravidão? Ela era considerada algo normal. Para Aristóteles, havia homens que estavam destinados a mandar e outros destinados a obedecer. Os escravos eram considerados como animais domesticados. Muitos dos meninos abandonados na coluna lactária eram recolhidos dali com intenção de explorá-los como escravos, mendigos ou prostitutas, no caso de serem meninas.

Transtornando o mundo

Ninguém se preocupava com aquilo. Mas, bendito seja o Senhor, que nos salvou, nos perdoou e nos lavou! Agora podemos olhar com outros olhos a miséria humana. Na carta de Paulo a Filemon, o apóstolo lhe encarrega de receber a Onésimo, um escravo, «não já como escravo, mas como mais que escravo, como irmão amado» (V. 16). Isto é uma reviravolta na compreensão de todo o mundo.

Quando os cristãos chegam até Tessalônica, as pessoas gritam: «Estes que transtornam o mundo inteiro também vieram para cá» (Atos. 17:6). É porque os cristãos viviam de uma maneira inusitada, e mostravam uma compaixão que ninguém entendia. E muito do que é hoje a nossa cultura, como se tem dito, surgiu da vida entregue a Cristo daqueles nossos primeiros irmãos.

Houve uma mulher extraordinária, Florence Nightingale (1820-1910), que aparece nos livros de matemática, porque foi atribuída a ela a criação dos gráficos circulares. Foi a precursora da enfermaria profissional. Em sua época, as enfermeiras eram um tipo de servidão. Ela pertencia a uma família de recursos e teve um chamado de Deus, que fez que ela se compadecesse da condição daqueles que morriam nos hospitais. «Estive doente, e me visitaram» (Mat. 25:36).

As estatísticas dizem que, antes do seu trabalho, morriam quarenta de cem pessoas internadas em um hospital. E depois, de cada cem, morriam apenas dois ou três. Ela foi uma mulher transpassada pela compaixão.

A preocupação de Paulo

Jesus teve compaixão dos famintos e necessitados. Mateus 14:14 diz: «E saindo Jesus, viu uma grande multidão, e teve compaixão deles». E em Mateus 15:32, quando Jesus chama os seus discípulos, diz: «Tenho compaixão das pessoas». Bendito seja o Senhor! Ele teve misericórdia do leproso; compadeceu-se dos cegos; compadeceu-se da viúva de Naim, e do pai de um moço epilético. Ele tinha esta qualidade notável de olhar às pessoas e ver nelas a necessidade, e agia em função daquilo.

Por isso, havia uma preocupação urgente no apóstolo Paulo. Em 1 Timóteo 1:3 lemos: «Como te roguei que ficasse em Éfeso, quando fui a Macedônia, para que mandasses a alguns que não ensinem diferente doutrina». Qual foi o propósito de deixar a Timóteo em Éfeso? Que não houvesse uma doutrina diferente. «Pois o propósito deste mandamento é o amor nascido de um coração limpo, e de boa consciência, e de fé não fingida» (V. 5).

Ao falarmos da doutrina de nosso Senhor Jesus Cristo, o que deveríamos esperar que ocorresse? «O propósito deste mandamento», ou seja, que não se ensine uma doutrina diferente, «é o amor nascido de um coração limpo, e de boa consciência, e de fé não fingida». Que interessante. Quando a doutrina que estamos ensinando é aquela que vem do trono da graça, o que deveria ocorrer naqueles que estão ouvindo e aprendendo? Que surja o amor e também a boa consciência.

O amor de coração puro

O que é o amor nascido de coração limpo? Sem dúvida, pensamos imediatamente em 1 Coríntios 13, o grande cântico do amor. Mas antes, de modo introdutório, Paulo faz um contraste. «Se eu falasse línguas humanas e angelicais, e não tenho amor, serei como metal que ressona, ou címbalo que retine. E se tivesse profecia, e entendesse todos os mistérios e toda ciência, e se tivesse toda a fé, de tal maneira que transportasse os montes, e não tenho amor, nada sou. E se repartisse todos os meus bens para dar de comer aos pobres, e se entregasse o meu corpo para ser queimado, e não tenho amor, de nada me serve» (V. 1-3).

Nós temos, na graça de Cristo, uma doutrina maravilhosa, que pode gerar em nossos corações um tipo de amor que não está presente em nenhuma outra parte. A primeira coisa que se diz do amor, em termos positivos, no versículo 4: «O amor é sofrido». Ao conhecer a doutrina de nosso Senhor Jesus Cristo, está fluindo de nosso coração este tipo de amor?

«O amor não busca o seu próprio interesse, não se irrita, não guarda rancor» (V. 5). Como é possível que possamos estar ouvindo a doutrina do Senhor, e não esteja surgindo em nós este tipo de amor, e sejamos indiferentes ao sofrimento e à necessidade? Quando a doutrina está sendo ensinada como o Senhor quer, o que deve começar a brotar em nós é o efeito desta palavra gloriosa.

Mas não só isso; «o amor nascido de um coração limpo, e de boa consciência». Que o Senhor nos guarde, porque, como se tem dito, hoje vivemos no tempo do que se denomina a pós-verdade. Já não há uma verdade absoluta, mas verdades particulares. Para o mundo, não existe algo que se possa chamar A Verdade; só existe a «minha verdade» ou a «minha opinião». Então, não há boa consciência, porque essa é a sua verdade, e esta é a minha verdade.

A sã doutrina de Cristo

Hoje, nós temos a responsabilidade da parte do Senhor de que, aquilo que falamos, aquilo que cantamos, seja possível de ver e de crer. Que em nossos lares, em nosso falar e em nossa conduta, no meio de uma sociedade cada vez mais secularizada, haja um grupo de homens e de mulheres que tem dito Sim à vontade do Senhor e aprenderam a ser compassivos.

«Mas tu fala o que está de acordo com a sã doutrina» (Tito 2:1). É provável que, para nós, a doutrina tenha mais a ver com um corpo organizado de conhecimentos que são captadas de maneira intelectual. Por exemplo, podemos falar da doutrina da salvação, da justificação, etc.

Entretanto, quando Paulo fala de doutrina, no final dos seus dias, o que diz a Tito não é isso. O que é o que está de acordo com a sã doutrina? «Que os anciãos sejam sóbrios, sérios, prudentes, sãos na fé, no amor, na paciência. As anciãs do mesmo modo sejam reverentes em seu porte; não caluniadoras, que ensinem às mulheres jovens a amar os seus maridos e a seus filhos, a serem prudentes, castas, cuidadosas de sua casa, boas, sujeitas a seus maridos, para que a palavra de Deus não seja blasfemada» (v. 4-5).

Isto é a sã doutrina, uma maneira de pensar totalmente diferente. E o que é a sã doutrina para os jovens? «Que sejam prudentes» (v. 6).

«Exorta aos servos que se sujeitem a seus amos, que agradem em tudo, que não sejam respondões; não defraudando, mas mostrando-se fiéis em tudo, para que em tudo adornem a doutrina de Deus nosso Salvador» (V. 9). Anima-os a que façam algo extraordinariamente complexo. Paulo está preocupado com a sã doutrina, em como devemos agir no meio desta geração maligna e perversa.

Quando o Senhor Jesus disse aos seus discípulos: «Vós sois a luz do mundo» (Mat. 5:14), acrescentou: «Assim brilhe a vossa luz diante dos homens, para que vejam as vossas boas obras, e glorifiquem a vosso Pai que está nos céus» (v. 16). Este ensino apostólico tornava plenamente plausível o evangelho, porque havia um grupo de homens e mulheres entregues a esta forma de doutrina.

Salvará a ti mesmo

Em 1 Timóteo 4:16 há uma passagem muito interessante. «Tem cuidado de ti mesmo e da doutrina; persiste nisso, pois fazendo isto, salvará a ti mesmo e aos que o ouvem». Entendemos que a doutrina, no caso das cartas a Timóteo e a Tito, relaciona-se com a nossa conduta. Agora, em que sentido salvamos a nós mesmos?

Por exemplo, a doutrina diz que os homens têm que ser prudentes; as mulheres, cuidadosas de suas casas; os servos, sujeitos a seus amos. Então, em que sentido, persistindo na doutrina, Timóteo se salvará a si mesmo? No que a doutrina salva? E se fosse assim, do que nos salva?

A doutrina nos salva do nosso egoísmo, da nossa avareza, da autocompaixão, do egocentrismo, da dureza com que tratamos os outros. A doutrina nos salva daquilo que na cruz se consumou. Paulo diz em Romanos 1:16: «Não me envergonho do evangelho, porque é o poder de Deus».

A doutrina se torna a medida usada por Deus para nos mostrar e nos libertar de nosso egoísmo tão profundo, de nossa meritocracia, de nossa capacidade de nos colocarmos sempre em primeiro lugar, de procurar cada um o que é propriamente seu; salva-nos do rancor, de nosso orgulho. Então, como Paulo tem presente esta forma de vida, tem que dizer a Timóteo que persista nisso.

Por exemplo, o que diz a doutrina, neste sentido, aos maridos? Temos que tratar a nossas esposas como um vaso mais frágil; não sendo ásperos com elas. E quando há conflito, o que ocorre?

Em varias ocasiões, em matrimônios que já tem anos, ouvimos expressões como: «É que já não sinto o que sentia antes». Alguém que diz isso está sendo desonesto com o Senhor. Nem eu nem você estamos em primeiro lugar, mas o Senhor. E se a sua doutrina me manda amar a minha esposa assim como Cristo amou a igreja e não o estou fazendo, prefiro me humilhar diante dele, e não justificar a minha atitude.

Isto é terrível, porque na cultura atual podemos nos justificar de tudo aquilo que se opõe à sã doutrina; ao sermos assim, Deus não teria um povo zeloso de boas obras. Como destacamos antes, podemos publicá-lo, mas não haverá o contexto necessário, que tem que prover não um irmão nem uma família, mas todos nós. A doutrina nos salva de nossos sentimentos enganosos; salva-nos de nós mesmos, de seguir os ditames do nosso coração sem importar com nada.

«Mas (a mulher) salvar-se-á dando a luz filhos, se permanecer na fé, no amor e santificação, com modéstia» (1 Tim. 2:15). Em que sentido se salvará? Antes dos filhos, a mulher pode dedicar longo tempo diante do espelho, arrumando-se. Não há problema nisto. Mas nascem os filhos, e este tempo se reduz de maneira drástica. Se no meio da noite ouve o choro de um bebê, quem é que ouve primeiro? A mãe.

Ela começa a concentrar sobre outro a sua energia, a sua capacidade, a graça de Deus. Aquele tempo que antes dedicava a si mesmo, agora brinda a outro. E aquela virtude do Senhor a dá a outro, esquecendo-se de si mesmo. E agora diz: «Este filho o Senhor me deu; vou criá-lo para ele».

Podemos nos oferecer voluntariamente a esta forma de doutrina a qual fomos entregues? «Teu povo te oferecerá voluntariamente no dia do teu poder» (Sal. 110:3). Creio que o desafio que o Senhor tem para nós hoje é justamente como se tem dito, tornar o evangelho plausível.

Síntese de uma mensagem oral ministrada em Rucacura (Chile), em janeiro de 2018.

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