Sofrimento e filiação

Através da dor, Deus operou em Jó uma mudança de cativeiro.

Romeu Bornelli

“Houve na terra do Uz um varão chamado Jó; e era este homem perfeito e reto, temente a Deus e apartado do mal… e era aquele varão maior que todos os orientais... De ouvidos te havia ouvido; mas agora meus olhos te veem. Portanto me aborreço, e me arrependo no pó e cinza” (Jó. 1:1-3; 42:5-6).

Os primeiros livros de cada seção do Antigo Testamento são livros fundamentais. Gênesis é o livro básico no Pentateuco; Josué, na seção histórica; Jó, na seção poética, e Isaías, na seção profética. Estes primeiros livros contêm todos os conceitos dos restantes, as sementes ou verdades mais essenciais.

Na seção poética, temos a Jó como o livro básico. Sem Jó, não teríamos Salmos, não teríamos louvor e adoração. Qual é a lição chave neste livro? Frequentemente, nos estudos sobre Jó, vemos: «o problema do sofrimento», «o sofrimento do inocente», e coisas assim. Mas esse não é o tema. O problema do sofrimento do justo é mencionado aqui, mas essa não é a chave.

A chave do livro do Jó está em uma palavra: Filiação. O propósito de Deus ao operar em Jó era uma plena filiação ou maturidade espiritual. Se nos perdermos nos sofrimentos –até no sofrimento do justo– não entenderemos. O que Deus opera aqui é o que ele faz nas vidas daqueles que lhe pertencem.

A filiação

Jó é o maior poema da Bíblia. Se a essência do livro fosse o sofrimento, não haveria quarenta capítulos de poesia. A ênfase é a plena filiação. Como Deus pode escrever tal poema? Os olhos naturais veem sofrimento após sofrimento; mas, os olhos espirituais veem filiação e maturidade espiritual, «o prêmio da suprema vocação de Deus em Cristo Jesus» (Flp. 3:14).

A palavra que Paulo usa aqui para «supremo», significa ascensional. No final do seu trabalho em Jó, Deus lhe fala no meio de um redemoinho. O redemoinho sempre age de baixo para cima; elevando algo a um nível superior. Por isso, Deus falou com Jó de um redemoinho.

Os dois primeiros capítulos do livro são prosas narrativas. A partir do capítulo 3, começa a poesia. O escrito é poético até Jó 42:5-6, que diz: «De ouvidos te tinha ouvido; mas agora meus olhos te veem. Portanto me aborreço, e me arrependo no pó e cinza». Aqui termina a seção poética. No final, à partir de 42:7, há outra seção breve em prosa, que narra o que passou depois com a vida de Jó.

A grande lição no livro de Jó, a filiação, é que Deus fará uma mudança de cativeiro em Jó, e isto é central no livro. Jó vivia no cativeiro do eu; e ele seria mudado para o cativeiro de Cristo. Uma mudança drástica, uma mudança profunda no coração; por isso, Deus agiu dessa forma na vida de Jó.

«Porque somos feitura dele, criados em Cristo Jesus…» (Ef. 2:10). A palavra «feitura», em grego, é poema. Nós somos poema de Deus. Deus está escrevendo o seu poema, operando na vida do seu povo, para que sejamos sua obra mestra. Este é o tema do livro de Jó.

A divisão no livro de Jó segue uma série de discursos. A seção poética começa no versículo 3:1, e vai em ascensão até o versículo 11:20. Esta é a primeira série de discursos.

Os amigos de Jó e as esferas da alma

Jó tem três amigos. Diríamos que, com esses amigos, ninguém necessita de inimigos. Cada um deles representa uma esfera da alma. Primeira fala Elifaz. Sem dúvida, ele representa as emoções. Ele é todo emocional, e analisa o sofrimento de Jó na forma emocional.

«Ora, uma palavra se me disse em segredo, e os meus ouvidos perceberam um sussurro dela.Entre pensamentos nascidos de visões noturnas, quando cai sobre os homens o sono profundo,sobrevieram-me o espanto e o tremor, que fizeram estremecer todos os meus ossos.Então um espírito passou por diante de mim; arrepiaram-se os cabelos do meu corpo.Parou ele, mas não pude discernir a sua aparência; um vulto estava diante dos meus olhos; houve silêncio, então ouvi uma voz que dizia:Pode o homem mortal ser justo diante de Deus? Pode o varão ser puro diante do seu Criador?» (Jó 4:12-17).

Notem a linguagem de Elifaz. «Então um espírito passou por diante de mim; arrepiaram-se os cabelos do meu corpo». É uma linguagem emocional. Quando interpreta os sofrimentos de Jó, por ele ser tão emocional, toca as emoções de Jó, e estas ficam todas perturbadas. Por quê? Porque Jó está sofrendo, ele não sabe por que, e precisa descobrir a causa do seu sofrimento.

«Sua fazenda tinha sete mil ovelhas, três mil camelos, quinhentas juntas de bois, quinhentas mulas, e muitíssimos criados; e era aquele varão maior que todos os orientais» (Jó 1:3). Jó era o maior do oriente, e o próprio Deus dá um quíntuplo testemunho sobre ele. «E Jehová disse a Satanás: Não consideraste a meu servo Jó, que não há outro como ele na terra, varão perfeito e reto, temente a Deus e apartado do mal?» (1:8). Uma vida maravilhosa. Esse é o testemunho de Deus.

Mas havia um problema com Jó, que ele mesmo desconhecia. Ele era cativo de sua beleza, de sua justiça própria e de sua glória própria. Não havia ninguém como Jó! Diz que, quando ele ia para as praças, os jovens se retiravam, os príncipes punham a mão em suas bocas, porque Jó era o maior dos orientais. Ele produzia espanto na vida dos outros. Então Deus vai operar em sua vida, para levá-lo a um nível que ele não conhecia, de relação e intimidade com Deus, e também a uma visão de si mesmo.

Quando Jó entra no sofrimento, seus três amigos o visitam. Diz-se que eles expressavam o máximo da sabedoria humana, e assim eles abordam a Jó. Depois de Elifaz, que tipifica as emoções, fala Bildade (capítulo 8). Bildade é racional; ele tipifica a mente, e tenta ajudar raciocinando sobre os sofrimentos de Jó, procurando sua interpretação na mente e nos pensamentos, de Jó. Mas Jó não acha resposta. Jó diz que Bildade está errado, porque ele é justo, íntegro e santo; em seguida, as razões de Bildade não são recíprocas. Mas, o importante aqui é que ele deseja aguçar a mente de Jó.

No capítulo 11, fala Zofar, arbitrário e impaciente. Ele representa a vontade. Na última das três séries de discursos, Zofar nem sequer fala; já perdeu a paciência com Jó.

O propósito de Deus

Emoções, mente e vontade, são as faculdades da nossa alma. Quando vem o sofrimento, o primeiro que fala é a nossa alma. De alguma maneira, procuramos uma resposta emocional, ou racional, ou no terreno da vontade, das decisões. Mas o propósito de Deus é usar os sofrimentos com um objetivo muito maior: aquilo que Jó chama no final do livro: «Agora os meus olhos te veem». Visão de Deus!

No entanto, há uma equivalência: «portanto me aborreço, e me arrependo no pó e cinza» (42:6). A palavra «aborrecer», usada aqui, é uma palavra específica no hebraico, que sempre é usada em relação com a adoração de ídolos. No livro de Samuel está escrito que a idolatria é abominação aos olhos do Senhor.

Quando Jó diz que se abomina, em outras palavras, está dizendo: «Eu era meu próprio ídolo. Eu me adorava, como aquele que mantém um espelho diante do seu rosto todo o dia». «Eu sou justo, reto, íntegro, temente a Deus e apartado do mal». Esse era Jó! Todo o dia, Jó estava com um espelho diante dele, contemplando-se. Então, Deus usou os sofrimentos para quebrar aquele espelho.

Cada vez que Deus trabalha em nós, ele é soberano no arranjo das circunstâncias. Não estamos nas mãos do destino ou da sorte, mas nas mãos do Senhor. Então ele usa todas as situações para operar em nossas vidas. Qual é o seu propósito? Uma filiação plena, uma mudança de cativeiro: do cativeiro do ego para o cativeiro de Cristo. Esta mudança é muito profunda.

Jó entrou em um processo de enfermidade. São nominados ao menos quinze sintomas dos seus males: feridas em todo o corpo, febre, pele ressecada, etc. Este processo durou uns seis meses. Deus estava escrevendo o seu poema. Que mistério maravilhoso!

O poema se desenvolve na primeira série (3:1 aos 11:20). Em seguida uma segunda série (12:1 aos 20:29), e uma terceira (21:1 aos 28:28). Assim chegamos aos «discursos de desafio» de Jó. O que está ocorrendo aqui é que Jó não conhecia a Deus adequadamente, e, portanto, ele não se conhecia a si mesmo adequadamente.

Autoglorificação, autocompaixão e autojustificação

Jó 29 é o capítulo da autoglorificação. Depois que a alma de Jó foi tão estimulada, ele já estava cansado, sofrendo muito, e então fará seus discursos de desafio. Sua fala nos lembra um advogado, porque ele diz: «Já tenho encaminhado a minha causa, e que o Todo-poderoso se defenda». Impressionante!

Jó crê estar em um tribunal humano, e acusa a Deus, dizendo: «Minha causa é segura, muito firme, muito forte. Eu sou justo, íntegro e reto; apartado do mal, temente a Deus. Então, que o Todo-poderoso se defenda». O problema de Jó era que Deus não descia para aquele tribunal. Frequentemente, em nossos sofrimentos, Deus nos responde com silêncio, e isto é ensurdecedor, porque nossas emoções, nossa mente e vontade estão aceleradas. Não sabemos explicar. E Deus está calado.

Quando Eliú começa a falar, ele representa a voz do Espírito Santo. Por que ele foi o último a falar? Porque era o mais jovem. No oriente, seria impossível que os jovens falassem antes dos mais velhos.

Quando sofremos, primeiro falam as faculdades da alma: emoções, pensamentos e vontade. Isto acontece sempre conosco, porque o nosso velho homem é mais antigo que o novo homem. Então o velho fala primeiro, e o novo no final. Mas quando o Espírito Santo vem e nos interpela, nossa boca se cala.

Sabem qual é uma das frases mais belas do livro de Jó? «Aqui terminam as palavras de Jó» (Jó 31:40). Essa é uma bela frase. Agora a sua boca está fechada; Jó está esgotado; suas emoções já não respondem a nada, sua mente não consegue aquietar-se. Ele já expôs a sua causa e sua defesa; mas Deus não diz nada, não se manifesta. Jó está no fim de si mesmo. Sua boca se cala, mas seu coração está bem vivo.

Os capítulos 29 ao 31 são o topo do egocentrismo. Jó 29 é o capítulo da autoglorificação. Jó sofreu e sofreu, e seu ego foi-se inflando e inflando. Ele não se continha, e então fala diante de Deus: «E prosseguindo Jó no seu discurso, disse:Ah! quem me dera ser como eu fui nos meses do passado, como nos dias em que Deus me guardava;quando a sua lâmpada luzia sobre o minha cabeça, e eu com a sua luz caminhava através das trevas;como era nos dias do meu vigor, quando o íntimo favor de Deus estava sobre a minha tenda;quando o Todo-Poderoso ainda estava comigo, e os meus filhos em redor de mim» (29:1-5).

«Deus me guardava (passado)quando a sua lâmpada luzia sobre o minha cabeça (passado)nos dias do meu vigorfavor de Deus estava sobre a minha tenda». Como Deus faz esta leitura? «Deus está me perseguindo».

O nome tem dois significados: «Perseguido», e «Voltando sempre para Deus». Por um lado, ele é perseguido, e pelo outro, é aquele que sempre volta para Deus.

Mas, antes que Jó volte para Deus, ele se volta para si mesmo. «Pois, ouvindo-me algum ouvido, me tinha por bem-aventurado; e vendo-me algum olho, dava testemunho de mim» (V. 11). «Vestia-me de justiça, e ela me cobria; como manto e diadema era a minha retidão» (V. 14). «Ouviam-me, e esperavam, e calavam a meu conselho» (v. 21). «Depois de eu falar, nada replicavam, e minha palavra destilava sobre eles» (V. 22). Todo este capítulo é autoglorificação. Jó fala todo o tempo sobre si mesmo, e a glória que ele tinha. «Mas a amizade de Deus já não está sobre a minha tenda». Essa tenda era a avaliação de Jó, mas não de Deus.

Todo o capítulo 30 é o capítulo da autocompaixão. Vejam quão ousado era Jó. «Mas agora zombam de mim os de menos idade do que eu, cujos pais teria eu desdenhado de pôr com os cães do meu rebanho» (30:1). Está dizendo que ele é imensamente melhor que eles.

«Sobrevieram-me pavores; é perseguida a minha honra como pelo vento; e como nuvem passou a minha felicidade» (v. 15). «Ele me derrubou no lodo, e sou semelhante ao pó e à cinza» (v. 19). «Tornas-te cruel para comigo; com a força da tua mão me persegues.Levantas-me sobre o vento, fazes-me cavalgar sobre ele, e dissolves-me na tempestade» (v. 21-22).

Quando Simão diz: «Senhor, tenha compaixão de ti; de nenhuma maneira isto lhe aconteça» (Mat. 16:22), o que Satanás procurava por trás da mente de Simão? Levar o coração do Senhor Jesus a autocompaixão. A autocompaixão é maligna. Cada vez que estamos sofrendo, temos tendência de mostrar a todos: «Olhem como estou sofrendo, como estou necessitado; todos orem por mim». Nosso egocentrismo é tão agudo.

E o capítulo 31 é o capítulo da autojustificação. Jó dirá que nenhuma viúva deixou de ser cuidada por ele, nenhum órfão passou fome a sua porta. Ele se autojustifica, no clímax do ego. Autoglorificação, autocompaixão e autojustificação. Assim, chegamos a esta frase especial: «por trigo me produza cardos, e por cevada joio. Acabaram-se as palavras de Jó» (Jó 31:40).

A voz do Espírito Santo

No capítulo 32, Eliú, figura do Espírito Santo, começa o seu discurso. «pelo que não digais: Achamos a sabedoria; Deus é que pode derrubá-lo, e não o homem» (32:13). «Pois estou cheio de palavras; o espírito dentro de mim me constrange» (V. 18). Eliú prossegue até o capítulo 37.

«Pois Deus fala de um modo, e ainda de outro se o homem não lhe atende.Em sonho ou em visão de noite, quando cai sono profundo sobre os homens, quando adormecem na cama;então abre os ouvidos dos homens, e os atemoriza com avisos,para apartar o homem do seu desígnio, e esconder do homem a soberba» (Jó 33:14-17).

Soberba, é a palavra chave. Deus estava tratando com Jó, e este é o grande motivo: a soberba. A soberba são aqueles olhos que olham para dentro. «Eu sou justo, sou íntegro, sou reto; eu temo a Deus, me desvio do mal. Eu, eu e eu…». Tal é a soberba, um pecado tão sutil, que caminha lado a lado com o nosso crescimento espiritual. Essa é a tragédia da soberba.

A soberba

Quando nós estamos crescendo espiritualmente, a soberba nunca deixará de caminhar do nosso lado e ela nos dirá: «Você está crescendo, está amadurecendo, está se tornando mais santo, você, você e você». A soberba é muito sutil, porque acompanha até o nosso crescimento espiritual. Então, qual é a oportunidade de nos libertarmos?
Recordam quando Davi deixou Jerusalém e foi para o deserto? Absalão se rebelou contra ele e tomou o trono, e Davi se retirou para o deserto. Ele era aquele ungido de Deus, o rei conforme o coração de Deus. Davi sai para o deserto de Judá, quando um descendente de Saul, chamado Simei, coloca-se ao lado da caravana, e vai amaldiçoando a Davi, lhe dizendo: «Fora, fora, homem sanguinário e perverso!» (2 Sam. 16:7).

Um general de Davi não se conforma com isto: «Por que esse cão morto amaldiçoaria ao rei meu senhor? Deixa-me passar e tirar-lhe a cabeça.Disse, porém, o rei: Que tenho eu convosco, filhos de Seruia? Por ele amaldiçoar e por lhe ter dito o Senhor: Amaldiçoa a Davi; quem dirá: Por que assim fizeste?.. Deixai-o; deixai que amaldiçoe, porque o Senhor lho ordenou.» (16:9-11).

Da mesma maneira, a soberba caminha junto ao coração. O general dava ouvidos a Simei, mas Davi não. Se a soberba caminhar ao nosso lado, não devemos lhe dar ouvidos. Não estamos nos tornando melhores: Cristo vai sendo formado em nós; é a vida de Cristo, é a glória de Cristo.

Um segredo da maturidade cristã é perceber que nossos valores, nossos recursos, tudo aquilo que requeremos, não está exatamente em nós, mas em Cristo, e ele está em nós. Se deslocarmos os seus valores para nós, vamos por um caminho perigoso. Nos gloriaremos em coisas que não são nossas, são de Cristo, seguirão sendo dele, e sempre serão dele.

Uma trombeta de Deus

Jó não aprendeu esta lição; então Deus tratou com ele. Deus pôs a sua mão em Jó, porque este era soberbo. «A soberba precede a destruição, e a altivez do espírito precede a queda» (Prov. 16:18). Há uma luz no final do túnel. Deus é bom e misericordioso. Sabendo que a nossa soberba nos arruinará, ele põe a sua mão em nós.

C.S. Lewis, um servo do Senhor do século passado, disse: «O sofrimento é uma trombeta de Deus para despertar um mundo surdo». Em nossa vida cristã, Deus tem uma trombeta, o sofrimento, e vai usá-la para despertar os nossos corações, para que não sejamos mortos pela soberba, para que não vivamos uma vida cativa do ego, porque a soberba precede à ruína, e a altivez de espírito, à queda.

Esse é o motivo do sofrimento de Jó. A ênfase não é o sofrimento do justo. Não. É o propósito de Deus, uma filiação plena, que nos leva, de um nível do conhecimento de Deus, a outro nível mais alto.

Como Deus faz isto? Mediante três séries de discursos, toda a alma de Jó é agitada; ele não sabe mais o que é que sente, não sabe mais que é que pensa, não sabe explicar nada mais. Então, tudo o que ele tem a dizer é sobre o seu tesouro. A boca fala do que está cheio o coração. Jó estava cheio de si mesmo, então fala de si mesmo, se autoglorifica, tem autocompaixão e se autojustifica.

As perguntas de Deus a Jó

Depois dos discursos de Eliú, chegamos à voz de Deus, capítulo 38. «Então respondeu Jehová a Jó de um redemoinho e disse: Quem é esse que obscurece o conselho com palavras sem sabedoria?». Que bela pergunta! Deus diz que Jó não conhece nada do que Deus está fazendo com ele. Em seguida, Deus faz um questionário para Jó, com perguntas maravilhosas. Vejam o capítulo 39.

«Sabes tu o tempo do parto das cabras montesas, ou podes observar quando é que parem as corças?Quem despediu livre o jumento montês, e quem soltou as prisões ao asno velozQuererá o boi selvagem servir-te? ou ficará junto à tua manjedoura?» (Jó 39:1, 5, 9).

«Movem-se alegremente as asas da avestruz; mas é benigno o adorno da sua plumagem?Pois ela deixa os seus ovos na terra, e os aquenta no pó,e se esquece de que algum pé os pode pisar, ou de que a fera os pode calcar.Endurece-se para com seus filhos, como se não fossem seus; embora se perca o seu trabalho, ela está sem temor;porque Deus a privou de sabedoria, e não lhe repartiu entendimento.Quando ela se levanta para correr, zomba do cavalo, e do cavaleiro.» (V. 13-18).

Que impressionante! Deus se compara a si mesmo com uma avestruz. A avestruz trata duramente a seus filhos, mas carece de sabedoria, não tem propósito nem entendimento. Mas Deus, quando trata os seus filhos, é pleno de sabedoria e de propósito.

As perguntas que Deus faz a Jó neste relato estão cheias de significado. Resumindo em poucas frases, podemos dizer que a excelência da sabedoria, a excelência do propósito, está em tudo aquilo que Deus faz. Deus atua sempre com sabedoria e com propósito.

«Minha mão ponho sobre a minha boca»

O discurso vai para um final maravilhoso. Deus fala com Jó de um redemoinho, em duas fases. Na primeira, Deus põe Jó de cabeça para baixo, e este não tem resposta. «Disse mais o Senhor a Jó:Contenderá contra o Todo-Poderoso o censurador? Quem assim argui a Deus, responda a estas coisas.Então Jó respondeu ao Senhor, e disse:Eis que sou vil; que te responderia eu? Antes ponho a minha mão sobre a boca.Uma vez tenho falado, e não replicarei; ou ainda duas vezes, porém não prosseguirei.» (Jó 40:1-5).

São maravilhosas estas frases. Jó não tinha o que responder. De alguma forma ele está entendendo que Deus, em sua sabedoria e propósito, está lutando com ele. Assim, a primeira fase da interlocução com Deus termina, e Jó põe a sua mão em sua boca.

A frase «Eu sou vil», é tão diferente a outras que Jó tinha falado. Antes, ele afirmava ser íntegro. «Estou limpo e sem transgressão, eu sou puro e não tenho iniquidade» (33:9). «Jó tem dito: Eu sou justo e Deus tirou o meu direito» (34:5). «Pensa que é coisa reta o que tem dito: Mais justo sou eu que Deus?» (35:2). Esse era o pensamento de Jó. Mas agora afirma: «Eis que eu sou vil» (40:4).

Jó estava chegando ao lugar onde Deus queria levá-lo. Aqui há um mistério maravilhoso. Deus poderá continuar falando com Jó, porque Jó pôs sua mão em sua boca. Possivelmente não teríamos esta segunda fase, se Jó não o tivesse feito.

«Respondeu Jehová a Jó do redemoinho, e disse» (40:6), a mesma frase do capítulo 38. São duas etapas, e, o que há no meio? A confissão de Jó: «Eu sou indigno; ponho a minha mão em minha boca». Isso permitiu a Deus continuar a sua obra em Jó. Que importante lição! A maneira como respondemos aos tratamentos de Deus, determinará se ele continuará sua obra conosco. Nossa resposta é muito importante.

Beemote e Leviatã

Estamos quase no final do livro, sem dúvida a sua parte mais preciosa. Deus compara Jó a dois animais: «Contemple agora o beemote, o qual fiz como a ti» (40:15). «Tirarás tu ao leviatã com anzol, ou com corda que lhe coloque em sua língua?»1 (41:1). Embora alguns pensem que beemote seja um hipopótamo, parece melhor ser um rinoceronte, porque diz que Deus lhe proveu de espada, se referindo possivelmente ao chifre deste animal. Mas o importante aqui é o que Deus quer ensinar a Jó.

Primeiro, o rinoceronte. Jó 1:3 dizia que Jó era o maior dos orientais. Ninguém pode empurrar e derrubar um rinoceronte; é tão pesado (mais de três toneladas). «Seus ossos são fortes como bronze, e seus membros como barras de ferro» (40:18). Assim era Jó, tão firme em sua própria justiça, em sua glória.

Aqui há uma expressão interessante: «Contempla agora o beemote, o qual fiz como a ti», como dizendo: «Olhe para este animal e te verás a ti mesmo, armado com uma espada». Ninguém se aproxima dele, firmado em suas pernas, tão robusto, tão forte, tão cheio de vigor. Esse era Jó.

A segunda pergunta é: «Tirarás tu ao leviatã com anzol?» (41:1). E: «Olha para todo soberbo, e humilha-o, e calca aos pés os ímpios onde estão.Esconde-os juntamente no pó; ata-lhes os rostos no lugar escondido.Então também eu de ti confessarei que a tua mão direita te poderá salvar.Contempla agora o beemote, que eu criei como a ti, que come a erva como o boi.Eis que a sua força está nos seus lombos, e o seu poder nos músculos do seu ventre.Ele enrija a sua cauda como o cedro; os nervos das suas coxas são entretecidos.» (40:12-17).

«Quem lhe pode tirar o vestido exterior? Quem lhe penetrará a couraça dupla?». Assim como o leviatã, Jó tinha uma dupla couraça. Aquelas escamas são tão justapostas, que não entra nem sequer o ar. Jó era inquebrantável; nenhuma lança podia penetrar a sua couraça. Deus pergunta: «Quem pode tirar o crocodilo? Quem pode pôr um anzol em seu nariz?». E, qual é a resposta? Só o próprio Deus. Ele o tiraria e trataria com ele, penetrando a sua couraça, seu orgulho.

«Quando ele se levanta, os valentes são atemorizados, e por causa da consternação ficam fora de si.» (41:25). «Na terra não há coisa que se lhe possa comparar; pois foi feito para estar sem pavor.Ele vê tudo o que é alto; é rei sobre todos os filhos da soberba» (v. 33-34). Essa é a figura de Jó; por isso Deus o tratou dessa maneira.

Para a maturidade espiritual

Qual era o propósito de Deus? Ele tem prazer no sofrimento? Não. Deus quer conduzir os seus filhos à maturidade, a um nível de intimidade e de conhecimento de Deus que antes não tínhamos. Então, no final do livro, capítulo 42, vemos um novo Jó. E, o que é o que este novo Jó diz? Leiamos:

«Então respondeu Jó ao Senhor:Bem sei eu que tudo podes, e que nenhum dos teus propósitos pode ser impedido.Quem é este que sem conhecimento obscurece o conselho? por isso falei do que não entendia; coisas que para mim eram demasiado maravilhosas, e que eu não conhecia.Ouve, pois, e eu falarei; eu te perguntarei, e tu me responderas.Com os ouvidos eu ouvira falar de ti; mas agora te veem os meus olhos.Pelo que me abomino, e me arrependo no pó e na cinza» (Jó 42:1-6).

O papel de Satanás

Quando começa o livro, no capítulo 1, vemos claramente que, quem tocou a vida de Jó, foi o diabo. Depois daquela conversa entre Deus e Satanás, Deus permitiu que Jó fosse alcançado. Primeiro Jó é tocado em tudo o que possuía, seus animais, seus filhos, e em uma segunda fase, é tocado o seu corpo, e ele sofre aquelas enfermidades.

Nessa etapa de crise, Jó adora a Deus. Ele permaneceu firme na crise, mas falhou no processo. Durante o processo, ele acusa a Deus. Mas Deus conhece tudo sobre Jó, seus pensamentos e emoções. E Deus manterá sua mão firme.

Aqueles que gostam de pescar sabem que, se o peixe morder o anzol, às vezes pode ser demorado tirá-lo da água. E, qual é o segredo? Manter a vara firme e deixar que o peixe se canse.

Foi isso o que Deus fez com Jó, quando este se debatia com as suas ideias e seus sentimentos, Deus mantinha o vara firme, porque o anzol estava posto no nariz do crocodilo e não escaparia do Todo-Poderoso.

Embora Satanás tenha tocado a vida de Jó, autorizado por Deus, Jó não considerou isso. Ele não diz: «Eu sei que tudo podes, e o diabo foi frustrado», mas: «Bem sei eu que tudo podes, e que nenhum dos teus propósitos pode ser impedido» (42:2), ou «nenhum dos seus planos pode ser frustrado». Jó entende que a ação do diabo estava dentro do projeto de Deus. Satanás não é autônomo, não atua por vontade própria; há um único e soberano Senhor, que rege todos os assuntos do universo.

Como Jó compreendeu? Por causa das perguntas de Deus. «Onde estava tu quando eu fundava a terra?». Perguntas como esta mostram a sabedoria e soberania de Deus. Agora Jó está claro: «Nenhum dos teus planos pode ser frustrado».

Um coração receptivo

«Ouve, pois, e eu falarei; eu te perguntarei, e tu me ensinarás» (42:4). Jó não diz: «Te perguntarei, e tu me responderás». Não está argumentando com Deus; agora ele tem um coração receptivo: «Te perguntarei, e tu me ensinarás». Que maravilha! Jó mudou de cativeiro; antes, ele perguntava, e requeria que Deus lhe desse resposta. Quanto mais avançamos em nossa jornada cristã, menos pergunta temos. Salmos 32:8 diz: «Te farei entender, e te ensinarei o caminho em que deves andar; sobre ti fixarei os meus olhos». Essa é a promessa que temos.

«Com os ouvidos eu ouvira falar de ti» (42:5). «Eu te conhecia de segunda mão». Ah, jovens irmãos e irmãs, queria que vocês fossem consolados neste conhecimento do Senhor. Não é só o Deus de seus pais – um conhecimento de segunda mão -- e um temor do Senhor de segunda mão.

A tragédia nos dias de Juízes foi exatamente essa: os anciãos que viviam no tempo de Josué conheciam o Senhor; mas logo se levantou outra geração que não conhecia o Senhor, nem as obras do Senhor através de Josué. Então, não expulsaram os seus inimigos.

Como já dissemos em um encontro passado, a primeira geração recebe a revelação, mas a segunda só tem a tradição. Que não seja assim conosco; que voltemos para a simplicidade e à pureza de Cristo.

A intenção do Senhor ao ganhar os pais, é que os filhos possam ir muito mais adiante; que a segunda geração vá mais adiante que a primeira. Então, que o Senhor nos anime neste caminho.

Mudança de cativeiro

Finalmente, concluindo o livro, diz: «O Senhor, pois, virou o cativeiro de Jó, quando este orava pelos seus amigos», tem um sentido muito mais profundo: «Jehová mudou o cativeiro de Jó». Antes, ele era cativo de si mesmo; agora é cativo de Cristo. E, qual é o resultado? Uma dupla porção. Esta, na Bíblia é a porção do primogênito.

Jó recebeu uma dupla porção, porque, espiritualmente falando, adquiriu um direito de primogenitura. Dupla bênção. Se puséssemos em uma equação o livro de Jó, qual seria esta? Sofrimento + a palavra de Deus = maturidade. Não é só o sofrimento, nem só a palavra de Deus, mas o sofrimento, mais a palavra de Deus. Sempre o Senhor operará assim em nossas vidas.

Por causa de Jó, temos os salmos: adoração, louvor, cânticos. O livro de Jó é aquele fundamento e os outros são a consequência. Em Cantares, temos a união com Cristo. Qual é a chave desta união? Quebrantamento; sofrimento, mais a palavra de Deus. Sem o livro de Jó, não temos a realidade de Cantar dos Cantares.

Filiação e sacerdócio

Concluindo, quando o Senhor se apresentou ressuscitado pela primeira vez, a primeira a vê-lo foi Maria Madalena. «Jesus lhe disse: Não me toques, porque ainda não subi para o meu Pai; mas vá aos meus irmãos, e lhes diga: Subo para meu Pai e vosso Pai, ao meu Deus e vosso Deus» (João 20:17).

Quando o Senhor diz: «Subo para o meu Pai», este é o Pai eterno, que tem comunhão eterna com seu único Filho. Ninguém mais podia chamar, a Deus, Pai, só o Filho. Mas, agora, ele tem uma mensagem. Aquele que não conheceu o pecado, por nós foi feito pecado. Ele morreu e ressuscitou. Agora, ele pode dizer: «Vá a meus irmãos». Jesus nunca chamou os seus discípulos de irmãos. Apenas discípulos, apóstolos, servos, e até amigos, mas nunca irmãos.

Agora ele pode dizer: «E diga-lhes: subo para meu Pai». Isto é tão pessoal. Mas também: «…e vosso Pai». «Subo para meu Deus…», tão pessoal. Mas também: «…e vosso Deus». Aqui são postas duas linhas de ouro, que percorrem a Bíblia de Gênesis até Apocalipse, sem interrupção.

A primeira linha é a filiação, o tema do livro de Jó. «Meu Pai e vosso Pai». Deus conduziria Jó a esta maturidade, a esta vida de união, a esta pertencimento. E, qual era o problema de Deus com Jó? Era o próprio Jó. Por isso, Deus tratou com ele. Essa é a filiação.

Em seguida: «Meu Deus e vosso Deus. Esta é a linha do serviço, do sacerdócio, que vai desde Gênesis a Apocalipse. Seus sacerdotes estarão com ele e reinarão com ele. E haverá um tabernáculo celestial, e o Cordeiro é sua lâmpada: a glória de Deus a iluminará, «e seus servos o servirão e verão o seu rosto».

Quanto à filiação, nós já somos filhos, mas o propósito de Deus é que o sejamos plenamente, conformados à imagem de seu Filho, para que ele seja o primogênito entre muitos irmãos. Por isso, Deus opera assim em nossas vidas.

Quando Deus nos olha, ele vê os seus bebês, a quem ama; mas, ele não tem prazer em que sigamos sendo bebês. Ele quer nos levar a participar com ele, naquilo que ele pensa, que ele quer, que ele sente – sermos companheiros de Deus.

Em seguida, o sacerdócio. Qual é a chave do serviço? A plena filiação. Se não crescermos nesta relação com Deus, como vamos servir-lhe? Com nossas capacidades, com nossas estratégias, com o equipamento natural? Não. O operar de Deus sempre passará pela Cruz, de glória em glória. Isto é o livro de Jó. O Senhor continue falando aos nossos corações. Amém.

Mensagem ministrada em Santiago do Chile, em abril de 2017.

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