A encarnação da visão celestial

Elementos fundamentais para que a igreja, como corpo, edifique-se e expresse a sua vocação.

Rodrigo Abarca

Sempre é um privilégio que o Senhor deseje nos falar e nos revelar a sua palavra. O Senhor nos chama a considerar uma vez mais a visão celestial, porque esta é a visão que governa todos os seus entendimentos com o homem e com a igreja. Tudo o que Deus faz, está governado por sua visão, por seu propósito. Então, esta visão não só governa a igreja, mas todos os atos divinos.

Visão e conflito

Sem visão, diz Provérbios, o povo se desordena; sem visão, a igreja perde a sua razão de ser. Converte-se em uma mera instituição humana, e deixa de ser a expressão da mente e do coração de Deus sobre a terra.

Quão importante é que esta visão esteja viva, pelo Espírito de Deus, em nossos corações. E quão propensos somos nós os homens, a nos desviarmos dela. É fácil ver isto quando lemos as cartas do Senhor Jesus às Igrejas, em Apocalipse capítulos 2 e 3. Vemos como estas se apartam da visão do Senhor; por isso, ele aparece no meio dos sete castiçais, porque as Igrejas devem voltar para a visão da centralidade e da supremacia do Senhor.

A igreja será edificada através dos séculos, até que se consume o propósito de Deus nela, através do conflito e da batalha, porque há poderes que estão determinados a impedir que a visão celestial se encarne através da igreja. Isso explica porque, constantemente, somos tentados a nos desviarmos da visão celestial.

Por isso, gostaríamos de revisar este assunto da visão celestial. Nós os que temos a alguns anos, ouvido esta palavra, acreditamos nela e a ensinamos; mas nem por isso estamos a salvo de nos desviarmos dela.

Qual é a grande mensagem do Senhor às Igrejas em Apocalipse? “Lembre”. Que interessante. “Lembre de onde caístes ... Lembra-te do que recebestes, e guarda-o”. Por isso, usamos este versículo de João: “O que ouvistes desde o princípio, permaneça em vós” (1 João 2:24).

O perigo da abundância

Pouco antes dos israelitas entrarem na terra prometida, o Senhor faz através de Moisés uma recapitulação de tudo o que eles tinham vivido. Mas em seguida lhes faz uma advertência: “Porque Jehová teu Deus te introduz na boa terra... Cuide de não te esqueceres de Jehová teu Deus ... não aconteça que coma e te sacie ... e tudo o que tiveres se aumente; e se orgulhe o teu coração ... e diga em teu coração: O meu poder e a força da minha mão me trouxeram esta riqueza” (Deut. 8:7-17).

Quanto a nós, não é verdade que temos sido enriquecidos pelo Senhor? Uma das coisas que o Senhor faz é que, quando ele nos enriquece espiritualmente, além disso, também nos enriquece materialmente. Eis aqui o perigo. Certamente, no princípio, os israelitas não tinham palavras para descrever o que viam. Mas depois se acostumaram às riquezas e à abundância. E assim, o que é santo pode se converter em algo comum.

Alguns jovens, hoje, nem sequer sabem, nem imaginam o preço que alguns dos seus irmãos mais velhos pagaram por esta visão. Eles nasceram na terra da abundância; mas alguns de nós recordamos o deserto. E por isso, para nós, isto é tão valioso.

Uma das frases mais tristes de toda a Bíblia é: “E se levantou depois deles outra geração que não conhecia a Jehová, nem a obra que ele tinha feito por Israel” (Jz. 2:10). Que não ocorra isto aos nossos jovens. A visão celestial tem um preço, e terá que ser paga. Quando lhe dão de presente algo que não custou nada para você, não será valorizado, não é verdade? Que o Senhor, nestes dias, possa nos trazer uma profunda revelação do valor da visão celestial.

A visão em Efésios

Em Efésios capítulo 4, queremos revisar alguns aspectos da palavra do Senhor em relação à encarnação da visão celestial, e como esta visão gloriosa da centralidade e supremacia do Senhor Jesus Cristo sobre todas as coisas está ali descrito.

Para este fim, Deus estabeleceu um vaso, um instrumento único, para que Cristo o encha tudo e em todos, para colaborar com Cristo na consecução e consumação desse divino propósito. E esse vaso é a igreja. Efésios nos fala do lugar da igreja no propósito de Deus. O propósito supremo de Deus não é a igreja. Entretanto, ela ocupa um lugar de privilégio nesse propósito.

Nos primeiros três capítulos de Efésios, o apóstolo Paulo nos apresenta o que ele chama de seu entendimento no mistério de Cristo, “mistério que em outras gerações não se deu a conhecer aos filhos dos homens, como agora é revelado aos seus santos apóstolos e profetas pelo Espírito” (Ef. 3:5).

Visão que cativa

Este mistério está constituído por três aspectos que definem o caráter e a vocação da igreja, e estão relacionados também com três testemunhas da visão celestial: Pedro, Paulo e João.

“Eu, pois, prisioneiro no Senhor, rogo-vos que andeis como é digno da vocação com que fostes chamados” (4:1). Paulo estava literalmente preso, em Roma. Estava encarcerado, limitado em seus movimentos, por causa do seu testemunho do Senhor.

“Eu, pois, prisioneiro no Senhor...”. Embora estivesse preso pelo sistema romano, Paulo não se considerava a si mesmo um prisioneiro de nenhum homem. Porque a verdade é que ninguém pode nos colocar em cadeias, se essa não for a vontade do Senhor. Muito tempo atrás, no caminho a Damasco, o Senhor o cativou, e Paulo se tornou um prisioneiro de Cristo.

“...rogo-vos que andeis como é digno da vocação com que fostes chamados”. Essa vocação se refere ao que ele nos mostra nos primeiros três capítulos, e tem a ver com a nossa resposta à visão celestial. Quando a visão celestial entra em nossos corações, converte-se em nossa vocação.

O que determina a nossa vocação? A visão celestial. Aqui não está falando da vocação individual. A vocação que Paulo menciona aqui é a chamada da igreja como corpo de Cristo. A igreja tem uma vocação, que está definida pela visão celestial. E essa visão está constituída por três aspectos: a igreja é chamada a ser a família de Deus, a casa de Deus, e o corpo de Cristo.

Três aspectos da visão

Em primeiro lugar, de acordo com o testemunho de João, a igreja tem sido chamada para ser uma família de filhos semelhantes a Jesus Cristo. Ele é o primogênito. Ele é a imagem segundo a qual todos os outros filhos devem ser conformados. O segundo aspecto é a casa de Deus; no testemunho de Pedro, a igreja é chamada para ser a casa de Deus; um templo de pedras vivas, do qual Cristo é o fundamento. E em terceiro lugar, a igreja é chamada a ser o corpo de Cristo, segundo o testemunho de Paulo, tendo a Cristo como a sua cabeça.

Estes três aspectos definem a nossa vocação. Neles, o Pai procura exaltar a Cristo como o centro de todas as coisas: o primogênito da família de Deus, o fundamento da casa de Deus, e a cabeça da igreja.

A partir do capítulo 4, o apóstolo faz uma chamada. Essa visão tem que ser encarnada na terra através das assembleias de crentes, para que se tornem expressões dessa igreja concebida na mente e no coração de Deus, para exaltar a primazia e a centralidade do Senhor Jesus Cristo.

Elementos fundamentais

Neste capítulo, Paulo apresenta quatro elementos fundamentais para a expressão dessa visão das Igrejas. Que o Senhor, por seu Espírito, mostre-nos em que estamos falhando, e o que nos falta ainda. Porque Cristo é o varão medida de Deus, o prumo com a qual ele mede a condição das Igrejas, para corrigir o que está defeituoso. Estes elementos estão em ordem ascendente, que não pode nem deve ser alterado na edificação da igreja.

1. Amor

O primeiro requisito para que possamos andar como é digno de nossa vocação é “com toda humildade e mansidão, suportando com paciência uns aos outros em amor”. Preste atenção: o amor aparece aqui, no ponto de partida da vida de igreja, e logo no final, no versículo 16. Isto quer dizer, que toda a vida de igreja termina pelo amor. O amor é o elemento fundamental.

O Senhor Jesus disse aos seus discípulos: “Amai-vos uns aos outros; como eu vos amei”. Usando uma metáfora, o amor é a argamassa, o elemento que une pedra com pedra na casa de Deus. Cada um de nós é uma pedra viva que o Senhor chamou para nos edificar juntos. Mas, como o Senhor vai nos unir realmente? Não é fácil, porque somos pedras vivas. Não somos pedras sem vontade. Temos interesses, desejos particulares e vontades diferentes uns dos outros.

Quando as pedras naturais são colocadas, não reclamam, porque não têm consciência; é fácil pôr uma junto da outra. Mas aqui estamos falando de pessoas. Então, há dificuldades. Agora, você não se escandalize por isso. Isso é normal, porque se isto não acontecesse, a Escritura não teria estas palavras como ponto de partida.

“…com toda humildade e mansidão”. Não pouca, mas toda. Aqui o Senhor diz: “Aguente sem medida e sem limite”, para que seja edificada a igreja. Você vai ter que suportar tudo, para que se cumpra em nós o seu propósito.

Como Cristo

Filipenses nos diz o que é a humildade, nos mostrando o exemplo de Cristo, “o qual, sendo em forma de Deus, não estimou ser igual a Deus como coisa a que aferrar-se, mas despojou-se a si mesmo, tomando a forma de servo ... e estando na condição de homem, humilhou-se a si mesmo, fazendo-se obediente até a morte, e morte de cruz” (Flp. 2:6-8). Entre nós, ele não tomou a forma que lhe foi dada por direito, como Rei e Senhor de tudo, mas se fez servo de todos. O próprio Senhor, na noite em que ele foi entregue, lavou os pés dos seus discípulos.

“Com toda humildade”, significa que você sempre tem que se colocar aos pés dos seus irmãos, como servo de todos, como o menor. Nunca pense que outros devem a você reconhecimento. “Quem é maior?”, perguntou o Senhor, “aquele que se senta à mesa, ou o que serve?” (Luc. 22:27). O que se senta à mesa, lógico. Isso é assim, isto é o normal. No mundo natural, humano, é assim. “Mas eu estou entre vós como o que serve”.

De maneira que isso é o que todos nós devemos fazer. Aqui não estamos falando de autoestima; não é que você se sinta inferior. Se cada um de nós toma sempre o lugar do menor, os conflitos resolveriam facilmente. Coloque-se sempre por último, e o Senhor honrará ao que quiser honrar. Tudo isto se requer para que o corpo de Cristo funcione, para que possamos caminhar juntos.

Vivendo em seu amor

“E a multidão dos que tinham crido era de um coração e de uma alma... e tinham todas as coisas em comum” (Atos. 4:32). Isto é fundamental: Não se pode cumprir o propósito eterno de Deus sem que estejamos juntos e unidos. Necessitamos de todos os irmãos e irmãs, para que a plenitude de Cristo se expresse em nós.

Procuramos a plenitude. Uma pequena porção não é suficiente. Deus quer que a plenitude de seu Filho seja expressa no meio da igreja. E para que isso seja possível, requer-se todo o corpo de Cristo. E para isso, o ingrediente fundamental é o amor. É o amor que se sacrifica, que nega a si mesmo, o amor de Cristo.

Se você amar, você não irá se envaidecer, não ficará acima dos outros, não maltratará os outros, não se irritará com os outros.  Agora, este não é um amor que nós possamos produzir em nossa natureza humana; é o amor que Deus derramou em nossos corações, pelo Espírito Santo que nos foi dado. Este é o amor que permite a edificação do corpo de Cristo.

2. Unidade

O segundo elemento é: “...solícitos em guardar a unidade do Espírito no vínculo da paz” (4:3). O que é a unidade do Espírito? É a unidade essencial do corpo de Cristo. Não é algo que temos que produzir por nós mesmos. Há uma unidade essencial: todos os que são de Cristo, sem importar em que lugar ou em que grupo esteja, são um só corpo. Esta é a unidade que reúne todos os filhos de Deus pelo mesmo Espírito. Portanto, a expressão aqui não é criar ou produzir, mas “guardar” a unidade.

No meio de um panorama de tanta divisão entre os cristãos, como podemos hoje guardar a unidade do Espírito?  É impossível que caminhemos juntos em comunhão com todos os filhos de Deus. Seria uma absoluta falta de realismo crer que isso seja possível ser vivido nos dias atuais.

Ainda assim, a nossa atitude deve ser sempre inclusiva. Em nosso coração sempre deve haver espaço para todos os filhos de Deus, sem importar em que contexto esteja. Isto é guardar a unidade do Espírito. Se não pudermos vê-la materializada hoje, ao menos o nosso coração deve guardá-la. O coração do Senhor está com todos os que são de Cristo, e estando nessa condição, somos todos amados pelo Pai.

Para Deus há apenas uma igreja. “Um corpo, e um Espírito” (4:4). Nunca digamos que uma assembleia de crentes em uma localidade é “o corpo” de Cristo em sentido singular, porque o corpo é formado por todos os filhos de Deus através do tempo e da história. Todos os que nasceram de novo, todos os que foram regenerados pelo Senhor, foram unidos pelo Espírito em um mesmo corpo, que se expressa em diferentes realidades na terra.

“...como fostes também chamados em uma mesma esperança da vossa vocação; um Senhor, uma fé, um batismo, um Deus e Pai de todos, o qual é sobre todos, e por todos, e em todos” (4:4-6). O Pai não tem filhos prediletos. Isso é ter um coração inclusivo. Que o Senhor nos guarde de ter um coração que exclua a outros filhos de Deus.

3. Diversidade

O terceiro elemento é: “Mas a cada um de nós foi dada a graça conforme a medida do dom de Cristo” (4:7). Primeiro, o amor; segundo, a unidade. E agora, a diversidade. A diversidade se fundamenta na unidade, apoia-se na unidade do corpo. A unidade é essencial, e sobre ela há uma diversidade de ministérios, dons e serviços.

A diversidade dos ministérios não deve afetar a unidade do corpo de Cristo, como tristemente ocorreu. Lembrem do que acontecia em Corinto: “Eu sou de Paulo; e eu de Apolo; e eu de Cefas” (1 Cor. 1:12). Quer dizer, utilizavam as diversidades dos ministérios para dividir o corpo de Cristo.

Graças a Deus por todos os servos a quem ele usou para trazer luz ao seu povo através de toda a história. Mas devemos recordar que eles não são mais que servos, são parte dessa diversidade de dons que o Senhor deu ao seu único corpo que é a igreja. E tudo o que é de Cristo, é nosso.

“E ele mesmo constituiu a uns, apóstolos; a outros, profetas; a outros, evangelistas; a outros, pastores e mestres, a fim de aperfeiçoar aos santos para a obra do ministério” (4:11-12). Na diversidade que o Senhor dá, existem cinco ministérios básicos, que permitem a manifestação de todos os outros ministérios no corpo de Cristo.

Isto é o que Atos 2:42 cita como o primeiro pilar da visão celestial na igreja primitiva: “a doutrina dos apóstolos”, quer dizer, o ministério da palavra. Sem ministério da palavra, representado por estes cinco dons de Cristo para a igreja, os santos não irão se levantar e ser capacitados para que cada um exerça a sua função na edificação do corpo de Cristo. Mas, se houver um ministério da palavra, forte, funcionando de acordo a estes cinco dons, então sim, haverá santos capacitados para fazer todos juntos a obra do ministério.

O corpo de Cristo não é edificado apenas com o ministério da palavra. É edificado com a obra do ministério, levado a cabo por todos os santos. A função dos anciãos e irmãos que colaboram com a palavra não é concentrar neles próprios todo o serviço em sua localidade, mas levantar todos os santos, para que cumpram a obra do ministério.

4. Mutualidade

Então, para que a igreja seja edificada, temos: amor, unidade, diversidade. E agora, “todo o corpo, bem ajustado e unido entre si por todas as juntas que se ajudam mutuamente”.

Aqui está o quarto elemento: mutualidade. Mais de sessenta vezes aparece a expressão “uns aos outros” no Novo Testamento. “amai-vos uns aos outros... suportai-vos... perdoai-vos... levai as cargas uns dos outros”.  Que importante é! Essa expressão define a natureza prática da vida de igreja.

A igreja, no sentido pratico, é constituída por relações ou “juntas”. Nada é mais importante que as relações na vida de igreja. Esse vínculo íntimo de amor é sobrenatural. É criado pelo Espírito, vem da vida divina, vem de Cristo. Essas juntas são criadas pelo Espírito, para que através delas flua a vida de Cristo, de uns aos outros. É por isso que são santas, e devemos aprecia-las como um tesouro.

Às vezes começamos a fazer algo e entramos em uma mecânica de trabalho; mas, por causa disso, nos esquecemos de que o mais importante são as nossas relações. Entretanto, elas são mais importantes que qualquer outra atividade no corpo de Cristo, e devem ser cuidadas, com esmero, com delicadeza, com a graça e o amor do Espírito, pois através delas flui a vida de Cristo de uns aos outros.

Quanto prejudicamos essas relações, quanto entristecemos o Espírito Santo com isso. Diz Efésios mais adiante. O corpo, “por todas as juntas que se ajudam mutuamente, segundo a atividade própria de cada membro, recebe o seu crescimento”. Se as juntas forem danificadas, não haverá crescimento. “...para ir edificando-se em amor”. E aí se encerra tudo. De maneira que o amor encerra, governa, completa, aperfeiçoa, toda a vida do corpo de Cristo.

Finalmente irmãos, temos: amor, unidade, diversidade, mutualidade. Que estas coisas possam estar presentes em todas as Igrejas. Que o Senhor confirme a sua palavra em nossos corações. Que esta visão divina, eterna, celestial, gloriosa, cative-nos, e que o Senhor nos dê a graça para andarmos como é digno desta vocação, desta visão que recebemos.

Síntese de uma mensagem oral ministrada em El Trébol (Chile), em Janeiro de 2016.

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