ÁGUAS VIVAS
Para a proclamação do Evangelho e a edificação do Corpo de Cristo
Corpos consagrados e mentes renovadas
O sábio equilíbrio entre o ensino doutrinário de Romanos e suas demandas práticas.
Marcelo Díaz
A carta escrita por Paulo aos Romanos é o tratado mais maciço do cristianismo para explicar a Glória do Evangelho. Grandes homens na história da Igreja se inspiraram neste livro para trazer renovação espiritual ao contexto em que viveram.
A carta contém 16 longos capítulos nos quais o apóstolo Paulo desenvolve o pensamento cristão. Verdades como a culpabilidade do homem, o pecado, a justiça de Deus, a justificação pela fé, a santificação, a graça, a vida no Espírito, a eleição, desenvolvem-se de forma magistral. Uma das características notáveis dos ensinos de Paulo é que combina o crer com o dever, a doutrina com o comportamento. Pelo qual, a carta pode dividir-se basicamente em duas partes. A primeira composta por onze capítulos que contém o desenvolvimento das verdades antes mencionadas e os cinco capítulos seguintes (capítulos 12-16), aspectos práticos que apelam à conduta cristã.
O desenvolvimento da primeira parte culmina com uma expressão magnânima onde Paulo, maravilhado, exclama:
«Oh! Profundidade das riquezas, tanto da sabedoria como do conhecimento de Deus! Quão insondáveis são os seus juízos e inescrutáveis os seus caminhos!, porque, quem entendeu a mente do Senhor? Ou quem foi o seu conselheiro? Quem primeiro deu a ele, para que fosse recompensado?, porque dele, por ele e para ele são todas as coisas. A ele seja a glória pelos séculos. Amém. (Rom. 11:33-36).
Indicativo e imperativo
Na primeira parte de Romanos, o modo verbal predominante é o indicativo, que se define como aquele que expressa atos reais que aconteceram, que estão acontecendo ou que acontecerão com certa frequência. Por isso Paulo, convencido dos atos ocorridos em Cristo, afirma convincentemente todo o acontecido na esfera espiritual.
Em seguida, a partir do início do capítulo 12 nos encontramos com um novo modo verbal que inaugura a segunda parte (cap. 12-16), e que determina o caráter dos últimos capítulos. É o modo imperativo. Este modo verbal é usado para expressar ordens, rogos ou desejos. O apóstolo faz uso dele em reiteradas ocasiões, dando a entender aos leitores que as afirmações antes ditas requerem uma resposta. Que na vida cristã o indicativo por si só não basta, é necessário a seguir o imperativo. Portanto, quem vive a vida cristã com honestidade, viverá a tensão que é gerada do indicativo ao imperativo.
A inflexão observada nos últimos capítulos é evidente, a intenção está posta na prática. A demanda apostólica é viver a consequência do anterior; dito de outro modo, a carta nos interpela da seguinte maneira: «Dado que (capítulos 1 aos 11), façam isto (capítulos 12 aos 16)», onde crer e obedecer são uma mesma resposta ao evangelho.
Em conclusão, a epístola nos testemunha a realidade que traz o evangelho e nos exorta a viver a novidade da vida instalada.
Os primeiros versículos da segunda parte cumprem a função de unir o anterior como uma dobradiça que articula a ambas. Paulo inicia esta seção sintetizando tudo o que foi dito anteriormente em apenas uma oração: «as misericórdias de Deus». Em consequência, emprega o seu rogo:
«portanto, irmãos, rogo-vos pelas misericórdias de Deus que apresenteis os vossos corpos como sacrifício vivo, santo, agradável a Deus, que é vosso verdadeiro culto. Não vos conformeis a este mundo, mas transformai-vos por meio da renovação do vosso entendimento, para que comproveis qual é a boa vontade de Deus, agradável e perfeita» (Rom. 12:1-2).
Corpos consagrados
O rogo apostólico apela à consagração do corpo. Paulo nos eteriza de repente com a nossa realidade; o nosso corpo é o mais próximo e tangível a nós. Portanto, o seu pensamento é, porque aconteceram profundas realidades espirituais («as misericórdias de Deus»), agora o corpo deve entregar-se como um sacrifício vivo e culto racional (ou razoável).
A palavra razoável ou racional são possíveis traduções da palavra grega «lógicos», que pode entender-se como um culto sensato, lógico, adequado ou também, como um culto inteligente, quer dizer, um ato próprio da mente. A primeira tradução tem muito sentido com o que se vem falando. O rogo de oferecer o corpo em sacrifício vivo é sensato diante de tão excelsa exposição de atos. A segunda tradução (racional) sugere-nos que a entrega do corpo é um ato lógico mental, quer dizer, um ato de adoração inteligente.
Qualquer que seja a opção a escolher para entender o versículo, o importante está no imperativo de entregar o corpo como um sacrifício vivo a Deus. Estamos em um mundo ególatra, inflamado por uma excessiva atenção ao físico. Atualmente o corpo é objeto de culto. Basta observar os ícones sociais que nos rodeia para notarmos esta pobre realidade, cuja única intenção é saciar a vaidade do ego. Em relação a esta conduta, a Palavra é categórica ao descrever as consequências:
«Pelo qual, também Deus os entregou à imundície, nos apetites dos seus corações, de modo que desonraram os seus próprios corpos entre si, já que mudaram a verdade de Deus pela mentira, honrando e dando culto às criaturas antes que ao Criador, o qual é bendito pelos séculos. Amém. Por isso Deus os entregou a paixões vergonhosas, pois até as suas mulheres mudaram as relações naturais pelas que vão contra a natureza. Do mesmo modo também os homens, deixando a relação natural com a mulher, se incendiaram em sua lascívia uns com os outros, cometendo atos vergonhosos homens com homens, e recebendo em si mesmos a retribuição devida ao seu extravio» (Rom. 1:24-27).
Mentes renovadas
Posteriormente, com relação à mente, a exortação manda a não conformar-se ao mundo e, a renovar-se no entendimento. A transformação será possível apenas através da renovação da mente. Para isto, ao cristão requer não conformar-se ao paradigma deste mundo. A expressão «não vos conformeis a este século», supõe a chegada de um novo. Portanto, o cristão vive em dois séculos, embora seja cidadão do novo. Por isso, a sua norma de vida, a sua pauta de conduta, as suas metas, não vêm deste século. Só assim poderá comprovar qual é a vontade de Deus agradável e perfeita.
A palavra transformação (metamorfose) é poucas vezes utilizada no Novo Testamento. Uma delas é nos evangelhos, na transfiguração do Senhor. Paulo também a utiliza em 2ª Coríntios 3:18.
Ambas as passagens mostram uma mudança de aspecto. Motivo pelo qual concluímos que, para ouvir a voz do Filho (que foi a interpelação do Pai no monte da transfiguração), e contemplar a Cristo como em um espelho (a exortação de Paulo aos Coríntios), a mente se renova e o ser é transformado à mesma imagem de Jesus Cristo. Em definitivo, a metamorfose do cristão virá pela atenção que puser em conhecer o seu Senhor e Salvador. Isto é diametralmente oposto à mente reprovada de uma vontade ensimesmada que se manifesta na corrupção da conduta. Como está escrito: «E como eles não se importaram de conhecerem a Deus, Deus os entregou a uma mente reprovada, para fazerem coisas que não convêm» (Rom. 1:28).
Conhecendo a vontade de Deus
Concluindo, observamos que estes dois primeiros versículos contêm um rogo com um duplo caráter. Por um lado, a consagração do corpo, e por outro, a renovação da mente. Ambos, com o único fim de comprovar qual é a vontade de Deus, que por sua vez será a que regula as nossas relações (Rom. 12:1-15:13). Esta perfeita combinação permitirá a comprovação da vontade de Deus para os aspectos práticos da vida cristã.
O irmão John Stott, em seu livro Mensagem de Romanos, classifica estes versículos da seguinte forma: (12:1-2) Conhecer a vontade de Deus em nossa relação com Ele; (12:3-8) conhecer a vontade de Deus conosco mesmo; (12:9-16) conhecer a vontade de Deus na relação entre nós; (12:17- 21) Conhecer a vontade de Deus na relação com os malvados e os inimigos; (13:1-7) conhecer a vontade de Deus na relação com as autoridades; (13:8-10) em nossa relação com a Lei; (13:11-14) com o dia da volta de Cristo; e com os membros mais fracos da comunidade cristã (14:1-15:13).
Uma leitura minuciosa destes versículos nos mostrará a grande quantidade de mandamentos, rogos e desejos que o apóstolo apresenta. Todos, com a determinada intenção de esclarecer aos santos qual é a boa vontade de Deus na vida prática do dia a dia.
Os dois últimos exemplos
Até aqui tudo faz pensar que os versículos finais (15:14-16:27) são só anelos e saudações pessoais de Paulo; no entanto, estes mostram um claro exemplo de consagração e renovação na vida do apóstolo e na vida da igreja.
O ministério de Paulo aos gentios, a preocupação pelos necessitados e o desejo para estender o reino de Deus além das regiões vizinhas, são uma evidência a mais da entrega do apóstolo. Paulo escreve com humildade, afeto e ânimo a uma igreja que não fundou nem conhecia, solicitando oração, planejando viagens e enchendo-se do forte pensamento de seguir pregando o evangelho.
Em seguida, nas vinte e seis saudações seguintes, observamos a entrega dos irmãos. Paulo reconhece o serviço de cada um. Mas, como é que Paulo conhecia os irmãos, se não lhes havia visitado? Atrevo-me a supor que estes foram irmãos oriundos de outras localidades, que dispuseram os seus corpos em serviço ao Senhor, renovaram as suas mentes com a urgência do evangelho, para em seguida serem enviados pelo Espírito para formar a igreja em Roma.
Paulo lhes saúda com familiaridade. A proximidade afetiva da saudação supõe instâncias de comunhão prévia; provavelmente eram famílias colaboradoras em outras cidades que Paulo frequentava. Estes irmãos nomeados são o vivo exemplo de corpos consagrados e mentes renovadas, que se dispuseram a servir ao Senhor com as suas mãos, ofícios e famílias, ali onde o Senhor necessitava deles.
Ao único e sábio Deus, seja glória mediante Jesus Cristo para sempre. Amém.