ÁGUAS VIVAS
Para a proclamação do Evangelho e a edificação do Corpo de Cristo
Cristo, o princípio da igreja
No meio da deterioração existente na cristandade, o crente tem que ir à fonte de todas as suas experiências de fé para ali ancorar a sua vida.
Rodrigo Abarca
No coração dos escritos de João pulsa com particular intensidade um chamado a retornar ao princípio. O apóstolo tem um assunto, um enfoque e um estilo muito característicos, que o distingue claramente dos outros escritores do Novo Testamento. A sua ênfase não está posta nas coisas exteriores e visíveis, mas naquilo que é mais essencial, igualmente, inalterável. Ele nos fala a respeito de Cristo, a vida eterna que «estava com o Pai e nos foi manifestada».
Que significado tem a mensagem de João para a igreja? Algo muito importante: o seu ministério particular se centra em nos mostrar o caminho da restauração. Com efeito, João sobreviveu quase trinta anos aos doze apóstolos e também a Paulo. Ele viveu o suficiente para ser testemunha da decadência da igreja plantada por eles. Já Paulo e Pedro, pouco antes de partir, tinham escrito a respeito das escuras nuvens que se abatiam ameaçadores sobre o futuro dos santos. Mas, no final do primeiro século, ao lermos sobre o estado das igrejas da Ásia no livro de Apocalipse, encontramos que a tormenta já tinha começado a desencadear-se (de fato, entre as igrejas da Ásia, só duas são aprovadas, enquanto que cinco são achadas em falta aos olhos do Senhor). Deste modo, coube a João contemplar com os seus próprios olhos como a igreja abandonava a simplicidade e pureza do fundamento original.
E este é o significado mais importante do seu ministério. No plano de Deus, João devia ser testemunha dessa decadência, pois, formado no mais íntimo conhecimento do Senhor, era também o homem mais preparado para mostrar à igreja o caminho de volta ao princípio esquecido.
Três perigos
João nos fala disso em sua primeira carta. Deixando de lado os perigos de caráter externo (como a perseguição imperial), ele nos alerta contra outros de natureza interna e, neste sentido, muito mais destrutivos.
O primeiro deles se encontra na separação para uma vivência puramente conceitual da verdade. Possivelmente o contato com a filosofia especulativa dos gregos estava na raiz deste problema. Muito rapidamente, a revelação fresca e vivificante de Jesus Cristo no coração do seu povo, seria substituída por uma teologia meramente conceitual e extremamente complexa. Uma elaborada e intrincada linguagem de especialistas. No entanto, o discípulo que talvez tenha conhecido mais intimamente ao Senhor, é extremamente simples em suas palavras. Pois para ele, Jesus Cristo não é um árido paradigma teológico, mas uma experiência vital e, em certo sentido, quase inexpressável. Ali onde tocamos a própria realidade do Senhor, as palavras se tornam necessariamente singelas. Tão incapazes são de expressar o que experimentamos.
O segundo perigo está na tendência para a organização e a complexidade. A primeira igreja era extremamente simples quanto a organização. Na realidade, ela não era absolutamente como as instituições e organizações humanas. Ela era um corpo, um organismo vivo. Mas, com o passar do tempo, alguns homens decidiram que já era hora de lhe dar um pouco de estrutura e organização. Desta maneira, encontramos certo Diótrefes ostentando o primeiro lugar em uma igreja, e opondo-se a João. Com o passar dos séculos, esta tendência se faria cada vez mais acentuada e a igreja acabaria convertida em uma enorme e eficiente estrutura, organizada a imagem e semelhança do império romano. A tragédia de tudo esteve em que Cristo deixou de ser o centro real e vivente de sua igreja. Outras coisas teriam que usurpar o seu lugar.
O terceiro perigo é o mais importante, pois é também a explicação dos dois anteriores. João o chama de o espírito do anticristo. Este espírito se caracteriza porque nega que Jesus Cristo veio em carne. Vale dizer, nega a encarnação do Filho de Deus. Isto traz como conseqüência uma separação entre a igreja e Cristo, a sua cabeça. Esta é a verdadeira causa que se esconde depois dos primeiros dois perigos. Para entender melhor em que sentido este espírito divide à igreja de seu Senhor e compreender a gravidade deste fato, é necessário saber como ocorreu tudo desde o começo. E aqui está também o caminho da restauração assinalada por João.
A vida original
Para recuperar a igreja original, João nos diz que temos que retornar primeiro à vida original. A vida que estava no princípio com Deus. Antes que algo fosse criado, ela se encontrava escondida no seio do Pai. O apóstolo a chama «a vida eterna», mostrando com isso o seu caráter mais essencial. É eterna porque é divina. Na verdade, trata-se da vida que possui o Deus eterno. Por este motivo, não muda, não se enfraquece, não decai nem jamais morre. Ela é a causa de existir a eternidade.
«A vida – nos diz João– foi manifestada e a temos visto». Aqui está a medula de sua mensagem. Ele nos fala de ter ouvido, tocado, contemplado e apalpado o Verbo da vida. Esta experiência íntima e profunda com Jesus Cristo explica o nascimento de algo chamado igreja sobre esta terra. Nada mais o pode explicar, pois, segundo João, ela tem a sua causa precisamente nesta experiência original.
Mas, de que experiência estamos falando? A resposta a esta pergunta nos aproxima do coração da mensagem joanina: a experiência de Jesus Cristo com os doze.
O Verbo de Vida se fez carne e habitou entre nós. Disto se trata tudo. João era já muito velho quando escreveu a sua carta, mas certamente podia recordar vividamente o momento em que Jesus cruzou por seu caminho. Um dia qualquer em sua vida comum de pescador junto ao mar da Galiléia, enquanto remendava as suas redes, a vida eterna se deteve por um instante junto a ele e lhe disse: «siga-me». Isso foi suficiente. A partir desse dia, João abandonou tudo e se uniu a mais onze homens na incerta aventura de seguir e conhecer a Jesus. Nada sabiam ainda do alto chamado que tinham por diante, pois, compreendamo-lo bem, eram sós doze homens comuns cujas vidas teriam permanecido para sempre no anonimato caso não tivessem tido o seu encontro com Jesus.
Mas o encontro aconteceu e muito em breve toda a história do mundo ficaria transtornada por este acontecimento. Durante os próximos três anos e meio seguintes os doze viveram para conhecer a Cristo em quase toda circunstância humana possível. Sucessiva e progressivamente, experiência após experiência, aqueles homens foram despidos e esvaziados, moídos e amassados até vir a ser «uma só coisa» com ele. E nessa profunda e participativa comunhão com Jesus Cristo chegaram, finalmente, a formar parte de algo que está completamente além da esfera deste mundo. Pois, na verdade deveriam experimentar a vida tal como era experimentada desde a eternidade no íntimo seio da Trindade. Contemplando a Cristo viver por meio da vida do Pai, eles aprenderam a viver por meio de Cristo. Esta foi a sua lição mais importante.
Como expressar com palavras o que esses homens viveram com Jesus Cristo? Como definir o mais essencial da sua experiência? João nos resume isso com uma só palavra: amor. Porque para o discípulo amado, o amor não é um ingrediente a mais da experiência cristã, mas o ingrediente fundamental. A vida que eles conheceram em Jesus tinha, sobretudo, essa forma essencial: «...como havia amado aos seus que estavam no mundo, amou-os até o fim». Aqueles homens foram amados por Jesus, e através dele, pelo Pai. Em todas as diversas experiências vividas junto ao Mestre aquele atributo predominante de sua vida divina foi cativando, envolvendo e transpassando. E, por isso, quando o Senhor lhes entregou o seu mandamento mais importante, entenderam claramente o que estava lhes mandando: «Amai-vos uns aos outros como eu vos amei».
Esta experiência os transformou por completo, até convertê-los nos doze homens que mudariam o mundo, quando, depois do Pentecostes, aquela vida veio morar dentro deles para sempre.
A família de Deus
No princípio da igreja se encontra esta experiência dos doze com Jesus Cristo. Esta é a matriz original, o ponto de partida. O caminho da restauração nos traz necessariamente de volta ao princípio de tudo. Para muitos, a origem da igreja se encontra no livro de Atos e, particularmente, no ministério de Paulo. Portanto, procuram estabelecer um modelo de ação a partir de suas práticas e ensinos apostólicos. No entanto, ainda que apreciemos o imenso valor de Paulo e seu ministério, temos que reconhecer que a origem histórica da igreja se encontra além de Paulo, e inclusive, do livro de Atos: em Jesus Cristo, tal qual o conheceram os seus doze discípulos. Por isso, na nova Jerusalém os seus nomes se encontram escritos nos doze fundamentos da cidade. Há aqui um ensino precioso.
E João nos fala em representação dos doze apóstolos originais: «O que vimos...». A sua voz se expressa intencionalmente com o sujeito no plural «nós». Se queremos voltar para os caminhos da igreja de Atos e ao ministério de Paulo e seus colaboradores não podem partir pelo externo e visível. Devemos passar mais à frente, até o que era desde o começo e permanece, portanto, inalterável: Jesus Cristo mesmo, «a vida eterna, que estava com o Pai e nos foi manifestada».
Diante disso, é possível que hoje, depois de dois mil anos de história, possamos recuperar aquela experiência vital do princípio? E João nos responde: Sim; é possível! Porque precisamente a qualidade essencial da vida que Deus nos deu em Cristo é a eternidade. Ele não esteve por um breve tempo entre nós e logo partiu (esta era a implicância do que alguns ensinavam nos dias finais de João). Mas, a verdade é muito diferente. Aquela vida que, em um princípio, habitava unicamente no corpo físico de Jesus, foi liberada na cruz e expandida para converter-se na vida de todos os que crêem nele. Este foi, como se tem dito, o significado mais importante do Pentecostes. E a matriz dessa união vital com Cristo foram os doze.
Não obstante, o Senhor lhes enviou para reproduzir com muitos outros a sua experiência original, pois mediante a sua morte e ressurreição, Cristo criou uma realidade nova: a igreja que é o seu corpo. Ela está formada por todos os filhos de Deus, aqueles que tendo crido em Jesus Cristo, chegam a formar uma só «coisa» com ele. Têm, portanto, os genes de Deus dentro de si. Visto que Deus pôs em seus espíritos a sua própria natureza por meio do Espírito Santo, participam também de sua vida, que é imperecível.
Por esta causa, ele tem o poder e a autoridade para viver até o fim dos séculos a mesma experiência transformadora dos doze apóstolos. Esta é a sua missão e a vocação fundamental.
O fruto característico dessa vida é o amor. Se nós «dermos uma oportunidade» à vida e a deixarmos crescer para que realize o seu íntimo desígnio, ela nos levará a viver juntos e unidos com todos aqueles que têm a mesma vida. É como um ímã. Apega-se a tudo o que tem a mesma natureza. Pois, o que ela procura é nos amassar e nos entretecer em Cristo, por meio de laços profundos e indestrutíveis de uns com os outros para formar uma só família nele. «Nós sabemos que passamos da morte para a vida em que amamos os irmãos». Se a vida eterna estiver em nós, «naturalmente» procuraremos viver unidos em amor uns com os outros. Esta é a única prova de que realmente possuímos a vida do Filho de Deus. Nem a multiplicação, nem a unção, nem os dons, nem o tamanho, nem ainda a mais profunda revelação de Deus, são uma prova suficiente.
Pois, acima de tudo, a vocação básica da igreja é ser uma família cujos membros se amam profundamente entre si. Porque assim ocorre primeiro na terra da Trindade.
Precisamos modificar radicalmente a nossa concepção de igreja. Ela não é algo que fazemos, mas algo que somos. Não é uma organização, ou estratégia, ou empresa ou organização complexa e eficiente. Muito menos o edifício onde os crentes se reúnem. A igreja é Cristo expresso corporativamente na terra. Ali onde encontramos à igreja, tal como ela deve ser, encontramos também a Cristo. Ele não pode ser separado de sua igreja.
No entanto, é aqui onde o espírito do anticristo (o terceiro perigo) fez estragos. Durante séculos enganou aos santos para lhes fazer ignorar a sua verdadeira natureza e herança em Cristo. Tem separado o Cristo vivo da sua igreja, escondendo-o em complexas teologias e áridas doutrinas; em organizadas e eficientes hierarquias eclesiásticas; em ruidosos cultos-espetáculos; em poderosos e cegadores ministérios ungidos; e, enfim, em toda sorte de movimentos, ênfase, modas, ensinos e práticas excêntricas. Como resultado, os crentes passam a vida procurando um Senhor que sempre está fora deles, longe, em alguma outra parte.
Mas, apesar de tudo, em nossos dias Deus está abrindo os olhos de muitos dos seus filhos para que descubra quem na verdade são e tornem a viver na simplicidade e pureza original, centrados totalmente no Senhor que é o tudo de sua igreja.
Precisamos voltar para os caminhos da primeira igreja. Para isso, nosso ponto de partida deve ser o mesmo de João e outros apóstolos: a experiência de conhecer e experimentar a Cristo de uma maneira conjunta e participativa, até que ele seja o nosso centro e o nosso tudo. Nada pode substituir isto, pois tudo o mais na vida da igreja brota desta fonte primitiva. Dali ela cresce e se desenvolve segundo o intuito de Deus.
Para onde? Para a plenitude, quando tudo nela seja Cristo, do centro até a circunferência; até que cada partícula de seu ser tenha sido tirada de Cristo, assim como cada célula da Eva proveio da carne de Adão.
Podemos imaginar o apóstolo João como um sobrevivente. Através das gerações, no meio da fumaça e as ruínas da cristandade no campo de batalha, um homem, apesar de tudo, permanece em pé. E em sua mão direita guarda um mistério; uma pequena semente, que parece insignificante, mas que encerra em seu interior o maior dos segredos: a vida divina. Se a semearmos – nos disse– ela tornará a crescer até que uma robusta árvore estenda a sua verde folhagem debaixo do céu. Tal como ocorreu no princípio, pois a vida que Deus nos deu ali, em seu Filho, é tão eterna como ele mesmo. Esta é a vida que Deus semeou em sua igreja. Deixemo-la crescer até que alcance o seu íntimo intuito!