ÁGUAS VIVAS
Para a proclamação do Evangelho e a edificação do Corpo de Cristo
O pietismo:
A necessidade de nascer de novo
A parte da história da igreja que não foi devidamente contada.
Rodrigo Abarca
Em meados do século XVII, o ímpeto da igreja luterana tinha decaído notavelmente na Alemanha. O fogo inicial da Reforma tinha decaído progressivamente em uma morna religião institucionalizada. O ardor espiritual tinha cedido o seu lugar a uma ortodoxia fria e altamente intelectualizada. A fé se converteu, por obra de teólogos posteriores a Lutero, em pouco mais que uma série de verdades doutrinários em forma de proposições teológicas, transmitidas de uma geração para outra. E também, na matéria de um debate interminável com outros credos e confissões protestantes.
O cristianismo autêntico era considerado como mera correção doutrinária e sacramental, sem importar a condição espiritual e moral dos crentes. O papel dos assim chamados «laicos» era meramente passivo, e se reduzia a aceitar os dogmas da igreja e receber os sacramentos. Essa era a «suma» da vida cristã naqueles dias. Claramente, tratava-se de um território muito árido para o desenvolvimento da vida interior do Espírito. Em conseqüência, o estado espiritual dos crentes era, em geral, muito deplorável.
O pietismo foi uma reação contra este estado de coisas no interior da igreja luterana. Os pietistas não rejeitavam a reforma nem a teologia de Lutero; mas as consideravam incompletas. Costumavam chamar à ortodoxia luterana uma «ortodoxia morta», porque não revelava nenhuma realidade espiritual. De fato, um dos seus lemas favoritos era: «É melhor uma heresia viva que uma ortodoxia morta». Por isso, punham uma grande ênfase na necessidade de uma fé viva e real, experimentada no coração, que fizesse diferença visível entre o cristianismo verdadeiro e o falso.
Na verdade, deviam lutar com a pesada herança de Lutero e sua igreja estatal da Alemanha, onde era impossível distinguir entre crentes e não crentes. Os pietistas procuraram zelosamente fazer visível a autêntica igreja de Cristo e distingui-la dos falsos crentes.
Para obter o seu objetivo, seguiram um caminho próprio e original. Negaram em se separar da igreja luterana e tentaram reformá-la por dentro. Tentaram aproximar-se o máximo ao modelo de igreja do Novo Testamento, criando uma espécie de «pequena igreja dentro da igreja» (ecclesiolae in ecclesia), onde se praticava o sacerdócio de todos os crentes – verdade fundamental do luteranismo, carente de expressão real até então. Assim, o seu lema foi «A Reforma segue em marcha».
Admiravam e aceitavam a teologia de Lutero, mas consideravam que o reformador deixou a sua obra inconclusa. Paradoxalmente, o seu maior êxito foi obtido fora dos muros de sua querida confissão luterana. Outros crentes tomariam o seu estandarte e ensinos para canalizá-las em uma poderosa corrente espiritual cujas conseqüências seguem hoje plenamente vigentes.
Os começos
Muitos historiadores coincidem em assinalar a Johann Arndt como o precursor do pietismo. Em 1610 publicou um livro que seria considerado ‘a Bíblia’ do movimento, chamado «Quatro livros sobre o cristianismo verdadeiro». Nele enfatizava a necessidade de que todo cristão passe pela experiência do novo nascimento. A vida cristã devia ser vivida, de acordo com ele, em uma união viva e vital com Cristo. Argumentava, além disso, que a pureza doutrinária seria mantida melhor por uma vida santa que pelas disputas teológicas.
Arndt não fez, no estrito sentido, parte do movimento pietista, mas contribuiu profundamente para modelar o seu espírito e vocação característicos. O seu livro circulou amplamente por toda a Alemanha e alcançou uma fama superada apenas pela própria Bíblia.
Depois de Arndt, surgiu a figura de Philipp Jakob Spener. Este foi um ministro luterano que, nos seus primeiros anos, foi influenciado pelos ensinos do reformador de origem francesa Jean de Labadie, quem trabalhou arduamente pela unidade da igreja na Holanda, e pelos escritos de Richard Baxter, o notável pastor puritano que encabeçou um avivamento em seus dias.
Spener estava profundamente preocupado com a condição espiritual em que se achava a igreja de seus dias. Em 1670, sendo pastor em Frankfurt, começou um programa de reforma que teriam vastas conseqüências. Reuniu em sua casa um grupo de crentes que compartilhavam as suas idéias, com o objetivo de orar, discutir os sermões do domingo, e ajudar-se mutuamente a aprofundar a sua vida espiritual. Estes círculos de crentes se estenderam por muitas congregações luteranas e foram conhecidos como «collegia pietatis» (grupos piedosos), de onde proveio o nome «pietismo».
Spener e os pietistas estavam decididamente convencidos de que a doutrina luterana do sacerdócio de todos os crentes devia ser levada em prática de maneira efetiva. O próprio Spener declarou em certa ocasião: «Oh, quem me dera conhecer uma assembléia reta em todas as coisas, doutrina, ordem, e prática; o qual faria dela o que uma assembléia cristã e apostólica devia ser, tanto na doutrina como na vida».
Um movimento semelhante dificilmente causaria rejeição em nossos dias. No entanto, foi amplamente rejeitado por alguns membros do clero e a autoridade civil nos dias de Spener, pois parecia que transgredia gravemente a ortodoxia luterana oficial. As acusações de heresia não se tardaram em acontecer.
As idéias pietistas de Spener foram expostas em seu livro «Pia Desideria» (desejos piedosos), que pode considerar-se com justiça o tratado fundamental do movimento. Nele, Spener expõe os males da igreja alemã e os passos necessários para a sua restauração. Entre esses males encontra: a intromissão do governo nos assuntos da igreja (pois Lutero a tinha colocado sob o controle dos príncipes), a conduta pouco cristã de muitos clérigos, as inúteis disputa teológicas, e a embriaguez, ambição e imoralidade reinou entre os laicos.
Seu plano de reforma incluía a extensão dos círculos piedosos como uma «ecclesiolae in ecclesia» a fim de fomentar a vida espiritual e a ajuda mútua entre os crentes, pois cria firmemente que uma grande parte do problema radicava na condição passiva dos chamados «laicos» na igreja, em contraposição ao claro ensino do Novo Testamento.
Também advogava pelo fim das controvérsias teológicas, pois dizia que a verdade não se encontra nos sistemas teológicos, mas na experiência do coração. Segundo Spener, a transformação interior é o assunto vital da experiência cristã. Por isso, defendia a necessidade de que os cargos clericais fossem ocupados por homens verdadeiramente regenerados, que mostrassem evidências de uma vida transformada.
Em suma, tratava-se de um verdadeiro plano de reforma, centrado na renovação interior e a «religião do coração», como gostavam de dizer os pietistas. No entanto, a reação de uma parte do clero não se fez esperar, pois a crítica de Spener revelava muitas falências. Foi acusado de heresia, em especial por sua oposição à «autoridade final» do credo luterano oficial, e seu desejo de retornar à Escritura como única fonte de autoridade.
A verdade é que Spener não se opunha à teologia de Lutero, mas às práticas luteranas de seus dias. Escreveu: «A doutrina da nossa igreja (luterana) não pode ser culpada por nada disto, pois se opõe vigorosamente a estas ilusões».
No entanto, foi expulso de Frankfurt e chegou a ser capelão da corte do príncipe da Saxonia em Dresden. Ali continuou com suas atividades a favor de uma reforma, mas também enfrentou à oposição das universidades saxônicas. As suas reuniões piedosas estavam no centro da controvérsia, e eram consideradas subversivas para a sã doutrina e a estabilidade da igreja, pois fomentavam o interesse dos «laicos» pela teologia e os assuntos eclesiásticos, pondo em dúvida –diziam– a autoridade do clero.
Também lhe acusava de divisionismo. É certo que Spener sempre se opôs às tendências separatistas dentro do pietismo, mas seguramente muitos dos seus membros chegaram a considerar como inevitável a separação. Contudo, o pietismo nunca chegou a ser um movimento organizado, mas uma profunda corrente espiritual que permearia a igreja até hoje.
Spener se viu obrigado a deixar Dresden após repreender pastoralmente a intemperança do príncipe eleitor. Aceitou então o convite do príncipe eleitor de Brandenburgo, Henrique III, que mais tarde se tornaria o rei da Prússia. Estabeleceu-se em Berlim, de onde continuou a sua obra até a sua morte em 1706, e permaneceu como ministro luterano até o fim.
Augusto Herman Francke
Durante a sua estadia em Brandenburgo, Spener contribuiria para formar o maior centro de influência pietista dos seus dias, a Universidade de Halle (1691). Entre outras coisas, convenceu o príncipe eleitor para que nomeasse como professor a outro dos grandes líderes do pietismo, Augusto Herman Francke. Tem-se dito, com justiça, que se Spener foi o pai fundador do pietismo, Francke foi o seu gênio organizador.
Francke nasceu na cidade de Lübeck, em 1663, em um lar profundamente influenciado pelos ensinos de Spener e a ortodoxia luterana. De fato, estudou na Universidade de Leipzig, considerada um baluarte do luteranismo ortodoxo. Estando ali, organizou e dirigiu um círculo pietista ao estilo de Spener ao que chamou «grupo de amantes da Bíblia». No entanto a experiência decisiva de sua vida chegaria em 1687. Até esse momento tinha «só conhecimentos mentais e nenhuma experiência do coração». No entanto uma noite, segundo conta, caiu de joelhos com muitas preocupações e dúvidas, e se levantou cheio de uma inefável certeza: «Quando me ajoelhei não cria que Deus existia, mas ao me levantar cria a ponto de derramar o meu sangue».
Como todo pietista, Francke pensava que sua experiência constituía um cadastro de conversão genuína, e que era a única maneira de obter certeza quanto à salvação. Os sentimentos do coração deviam estar no centro da vida cristã autêntica.
Depois de formado, Francke se uniu a Spener em sua luta para reformar a igreja luterana. De retorno a Leipzig começou a realizar conferências entre os estudantes, as quais se tornaram muito populares. Mas alguns professores da universidade se opuseram tenazmente a ele e o acusaram de sustentar, junto com Spener, mais de 600 heresias! Finalmente, as autoridades da cidade o ameaçaram a abandoná-la (1690), e Francke aceitou um convite para ser diácono da igreja em Erfurt. No entanto, até ali os seus adversários o seguiram e novamente conseguiram que fosse expulso da cidade pelas autoridades locais (1691). Foi então quando lhe chegou um convite do príncipe eleitor de Brandenburgo para ingressar como docente na recém fundada Universidade de Halle. Ali Francke se converteu na alma teológica da universidade, que, sob a sua influência, tornou-se no centro mais importante do pietismo dos seus dias.
O zelo espiritual de Francke, as suas inspiradas cátedras expositivas e sua enorme energia organizadora, contribuíram para dar forma a um ardente movimento missionário, em tempos quando o protestantismo em geral não se interessava nas missões.
Em 1706, os primeiros missionários de Halle foram enviados para a Índia, com o apoio do rei Henrique IV da Dinamarca. Os seus nomes eram Bartolomé Ziegenbald e Henrique Plütchau. Durante o século XVIII, saíram de Halle e outras instituições associadas 75 missionários para o estrangeiro, entre os quais o mais renomado seria Cristian Federico Schwartz (1726-1798), quem trabalhou quase 40 anos na Índia, até a sua morte. Na verdade, deve considerar-se este esforço missionário como o primeiro dos tempos contemporâneos, realizado quase 100 anos antes da empresa missionária moderna de alcance mundial iniciada com o Guillermo Carey.
Paralelamente, Francke organizou e dirigiu várias obras educativas e de caridade. A compaixão pelos mais fracos e necessitados caracterizou sempre o movimento pietista. Em 1795 inaugurou uma escola para meninos pobres, que logo ampliou devido à grande quantidade de pedidos, e iniciou uma famosa escola de adaptação. Em 1698 abriu o seu conhecido orfanato. Assombrosamente, todas estas obras foram realizadas quase sem meios econômicos, sustentado unicamente pela fé na provisão de Deus. Cem anos mais tarde, a sua obra serviria de inspiração a outro homem, que iria fundar e conduzir um orfanato sob as mesmas premissas de fé: George Muller, de Bristol.
Tal foi a sua influência, que, a sua morte era reconhecida e admirada por toda a Europa como líder do pietismo e uma das forças mais poderosas do protestantismo. Era recebido livremente entre pobres e abastados, pequenos e poderosos. No entanto, usava sempre a sua influência entre os ricos e poderosos para ajudar aos mais pobres. Um historiador observa: «Ele foi o iniciador, o fundador e o líder vitalício de uma empresa caridosa que conquistou a mente e a admiração de pessoas do mundo inteiro. Nunca se tinha visto algo semelhante na longa história da igreja cristã».
Depois dele, a história posterior do pietismo estaria associada a uma antiga companhia de cristãos perseguidos, conhecidos como «Unitas Fratum» (Irmãos Unidos), quem depois de longos anos de peregrinação encontraram finalmente um lar nas terras de um poderoso nobre alemão, o conde Nicolás Von Zinzendorf, formado profundamente nos ensinos de Spener e Francke. Junto a ele iniciariam um novo capítulo na história do pietismo, cujas conseqüências seriam de vasto alcance. A história posterior seria conhecida como «os irmãos morávios».
Legado do pietismo
Sem dúvida, o pietismo cavou um poderoso sulco na história da restauração da igreja para o modelo neotestamentario. A sua ênfase no novo nascimento como experiência indispensável de todo cristão autêntico, assim como uma subseqüente vida transformada, se tornou ininterrupto. A mera adoção mental de um credo ortodoxo –ensinavam– não basta para salvar os homens. É necessário um novo nascimento que transforme os homens desde a raiz do seu ser.
A fé não deve ser entendida só na cabeça, mas, sobretudo, experimentada no coração, vale dizer, e falando biblicamente, no centro emotivo e volitivo do homem. Deve afetar a totalidade das experiências e condutas humanas. Esta foi sempre a essência do cristianismo verdadeiro. E foi o estandarte tanto do pietismo como dos irmãos morávios, como também o avivamento metodista posterior de Withefield e os irmãos Wesley.
Por outro lado, os pietistas viram corretamente que as controvérsias teológicas contribuíam para estabelecer um clima propenso a um cristianismo meramente mental, carente de experiência espiritual. Por isso, ao enfatizar a vida acima do conhecimento meramente intelectual da doutrina cristã, redescobriram o genuíno fundamento da unidade da igreja.
Contribuíram, além disso, para o surgimento de uma grande quantidade de literatura devocional que enfatiza a comunhão viva do crente com Deus, como também uma grande parte da música de inspiração e adoração contemporânea.
E, finalmente, e não menos importantes, puseram uma decidida ênfase no sacerdócio de todos os crentes, advogando pelo surgimento de uma igreja mais orgânica em sua vida e expressão, onde todos os santos fossem participantes ativos do ministério. Os seus êxitos neste campo foram parciais devidos talvez, ao seu intento de reformar a igreja «por dentro».
O tempo provaria que a sua idéia de «ecclesiolae in ecclesia» não era viável. Ou os círculos pietistas acabaram por separar-se da igreja luterana dos seus dias, ou, foram reabsorvidos e desapareceram. De tudo isso, fica como ensino que a igreja do Novo Testamento só pode surgir e crescer ali onde está livre das limitações que impõe qualquer estrutura ou organização humana estranha a sua essência; livre para seguir fielmente a direção da vida que opera em seu interior.