Irmãos Não Conformistas na Inglaterra (2)

A parte da história da Igreja que não foi devidamente contada.

Rodrigo Abarca

As primeiras congregações

Durante o reinado de Isabel I, toda forma de divergência da Igreja da Inglaterra foi proibida e castigada com o cárcere. Entretanto, no final do seu governo, trocou-se a prisão pelo exílio. Naquele tempo floresceram em Gainsborough e Scrooby duas congregações independentes, sob a condução de John Smyth e John Robinson. Mas foram perseguidos constantemente até que, depois da morte de Isabel e o advento de Tiago I, ambas as congregações se viram obrigadas a fugir massivamente para a Holanda.

Emigraram juntas em 1607, em uma longa viajem cheia de prisões, e dolorosas separações. E entraram na Holanda separados em pequenos grupos de irmãos, destituídos dos seus bens, casas e direitos civis. Mas ali foram recebidos com compaixão pelas igrejas nativas.

Na Holanda formaram uma igreja de imigrantes que perseverou unida por um tempo. Não obstante, naquela época as igrejas do país estavam envolvidas em severas disputas doutrinárias. A mais importante dividia amargamente os calvinistas dos arminianos. Logo a congregação se viu afetada pela mesma disputa, ao ponto da separação se fazer inevitável. Smyth foi excluído da comunhão junto com mais quarenta irmãos e formou uma nova congregação. Mais tarde Robinson, que recusava a forma presbiteriana de governo que outros líderes da congregação apoiavam, apartou-se também dela e começou uma nova congregação em Leyden onde continuou com um influente ministério.

Todas estas dificuldades ilustram o surgimento de uma nova forma de conceber a organização da igreja, cuja influência chega até os nossos dias. Nela foi abandonada a unidade dos crentes em Cristo como terreno comum da igreja (os não conformistas tinham lutado pela unidade visível dos verdadeiros crentes em igrejas independentes do estado) e foi substituída por doutrinas e formas de organizações particulares. De fato, a sua volta a Inglaterra, que sustentava o ponto de vista calvinista formou as assim chamadas igrejas "batistas particulares", enquanto que os de tendência arminiana, estabeleceram as "igrejas batistas gerais". Irmãos que tinham nascido e crescido juntos, agora descobriam que já não podiam continuar juntos devido às suas diferenças doutrinárias. Este foi o embrião do denominacionalismo evangélico com toda a sua série de interminável e dolorosas divisões entre os santos.

Outro evento de vastas conseqüências surgiu destas igrejas. Muitos irmãos, cansados da perseguição e da falta de liberdade para viver a sua fé, decidiram emigrar para o "Novo Mundo", para formar uma nova nação. A pioneira neste grande movimento puritano foi a congregação de Leyden. Ali se formou o primeiro grupo de exilados que embarcou no Mayflower rumo à América. As iluminadas palavras de despedida que lhes foram dirigidas por John Robinson merecem ser recordadas:

"Encomendo-lhes diante de Deus e dos seus anjos escolhidos que não me sigam mais do que me viram seguir ao Senhor Jesus Cristo. Se Deus revelar algo por meio de qualquer outro de seus instrumentos, estejam prontos para recebê-lo tal como receberam o que houve de verdade em meu ministério. Porque estou verdadeiramente persuadido de que o Senhor tem ainda mais verdades que extrair de sua Santa Palavra. Da minha parte, não posso lamentar o suficiente a condição daquelas igrejas reformadas que... no presente, não irão além dos instrumentos do seu reformismo. Os luteranos não podem ser convencidos para ir além do que Lutero viu; quaisquer que sejam os aspectos de sua vontade que Deus revelou a Calvino, prefeririam morrer antes do que abraçá-los. E os calvinistas, como podem ver, permanecem firmemente apegados no mesmo lugar onde os deixou aquele grande homem de Deus, e que, entretanto, não viu todas as coisas. Esta é uma lamentável tragédia, porque apesar deles terem brilhantes luz que ardiam em seu tempo, não compreenderam todo o conselho de Deus".

Tranqüilidade e perseguições

Durante longos anos, tanto independentes como batistas foram perseguidos, postos na prisão, mutilados e executados devido a sua rejeição à igreja estatal. Mas, apesar de tudo, o número de suas congregações aumentou. Em 1641, a Câmara dos Lordes da Inglaterra afirmou que existiam perto de oitenta reuniões "sectárias" em Londres e seus arredores.

A situação melhorou notavelmente para as igrejas não conformistas durante a Guerra Civil, apesar de que o elemento presbiteriano dentre elas conseguiu, com o apoio do Parlamento, traçar as linhas de uma "Nova Igreja", apoiada na organização da igreja presbiteriana escocesa. Esta nova forma, aceita e ratificada pelo Parlamento, quis impor a toda a Inglaterra a suprimir assim toda forma de divergência (tanto de independentes como batistas). Entretanto, o seu empenho não pôde ser realizado, devido, em grande parte, à oposição de Cromwell, o Lorde Protetor. O seu exército era composto por homens de todas as tendências cristãs, que tinham lutado em pés de igualdade, e não estavam dispostos a limitar a liberdade de consciência pelo que tinham lutado. Em uma rápida ação, dissolveram o Parlamento e estabeleceram a República, onde a plena liberdade de consciência foi garantida para todos.

Naqueles anos de tolerância, um importante esforço por alcançar a unidade entre as diferentes facções não conformistas foi levado a cabo sob os auspícios de Oliver Cromwell, ele próprio um independente. No ano de 1654 reuniu um grupo de teólogos puritanos para delinear o terreno essencial para a unidade evangélica. O que eles procuravam era um "mínimo aceitável" para ter comunhão. Nas inspiradoras palavras de Robert Harris, membro da assembléia de Westminster, pode-se ver muito do espírito que os animava: "Não me aventuro a definir o que é tão simplesmente fundamental e absolutamente necessário, sem o qual não há esperança. Isto é do que estou seguro: Primeiro, os pontos fundamentais são menos numerosos do que muitos, de ambos os lados, pensam que são. Segundo, que nenhum muro de arrimo e nenhuma superestrutura destroem o fundamento". Aqui encontramos um iluminado chamado à comunhão com base no fundamento essencial, que nenhuma divisão posterior deveria destruir. E acrescenta: "Os homens humildes e de coração sincero, apesar de divergir nas opiniões, podem andar juntos, orar juntos e amar-se uns aos outros, e é o que de fato fazem".

Esta comissão esteve integrada, entre outros, por Richard Baxter e John Owen, ambos notáveis teólogos da história do Puritanismo. As suas conclusões foram redigidas em 16 pontos essenciais e inclusivos, que -pensavam- qualquer crente verdadeiro poderia assinar (não havia alusões a formas de organização, nem tampouco a doutrinas específicas e controversiais). Entretanto, apesar de ter posto um notável esforço na procura de uma unidade real, fracassou, porque para muitos crentes dessa época pesaram mais os interesses particulares e partidaristas. O caminho do denominacionalismo evangélico tinha sido delineado e no futuro os crentes prefeririam reunir-se e caminhar juntos só com aqueles que pensam e compartilham os seus pontos de vistas específicos, em adição ao fundamental.

Durante toda a regência de Cromwell, as igrejas não conformistas gozaram de uma grande liberdade para reunir-se e pregar o evangelho. Os bispos anglicanos estavam no exílio, e muitos pensaram que o novo estado de coisas era definitivo. Entretanto, não foi assim. A confiança que muitos crentes puseram na ação política para estabelecer as suas idéias religiosas se viu, mais uma vez, defraudada. Após a morte de Cromwell, a velha ordem monárquica foi restaurada, e os bispos exilados retornaram para o seu lugar. Em 1662 foi editada a "Ata de Uniformidade" pela qual todo ministro da Inglaterra devia declarar publicamente diante da sua congregação o seu assentimento ao livro de oração comum da "Igreja da Inglaterra" (que reúne todos os seus ritos e fórmulas), e obter, além disso, a sua ordenação episcopal para seguir exercendo a sua função. Como conseqüência, cerca de 2.000 ministros que recusaram conformar-se à ata foram expulsos das suas congregações.

A seguir, o governo inglês dispôs severas medidas contra os irmãos dissidentes. Proibiu-lhes exercerem cargos públicos, ocupar posições de autoridade e realizar reuniões com mais de cinco pessoas presentes além de sua família. Aos ministros expulsos foram-lhe proibidos aproximar-se de menos de 10 quilômetros do lugar em que tinham exercido anteriormente o seu ministério. As penas para quem transgredia estas normas eram excepcionalmente severas.

Estas duras e desiguais condições se mantiveram desde meados do século XVII até parte do século XIX. Entretanto, e apesar de tudo, os irmãos continuaram reunindo-se em secreto, durante aqueles longos anos de perseguição e sofrimentos. Enquanto isso, publicaram uma grande quantidade de literatura e músicas inspiradas. Muitos homens dotados de graça e poder espiritual marcharam entre as suas fileiras: Isaque Watts (1674-1748), um independente, escreveu muitos hinos que são cantados até hoje; John Owen (1616-1683) foi um poderoso expoente dos ensinos dos Irmãos; e, possivelmente o mais conhecido de todos, John Bunyan, quem escreveu um dos livros mais difundidos na história do cristianismo: "O Peregrino".

Luzes e sombras

Torna-se impossível fazer uma avaliação do legado dos Irmãos Não Conformistas da Inglaterra, sem mencionar quanto o moderno movimento evangélico deve a eles em quase todos as suas ramificações e variantes, com todas as suas luzes e sombras.

Deles, como vimos, veio o conceito de igreja como sinônimo de congregação. Ao revisarem as suas Bíblias compreenderam que a "igreja nacional" (v.gr. igreja da Inglaterra, igreja da Alemanha, etc.) era uma noção sem fundamento escriturístico, pois o uso regular da palavra igreja no Novo Testamento se refere a uma congregação local, composta por crentes regenerados e separados do mundo de maneira visível. Cada congregação ou igreja é, pelo mesmo, independente quanto ao seu funcionamento e administração das demais congregações, com as quais mantém, não obstante, laços de irmandade.

Este conceito de igreja estava unido a uma forte ênfase na doutrina cristã como base de comunhão. Por doutrina entendiam as verdades escriturísticas que deviam ser expostas à igreja por meio de uma pregação inspirada, direta e profética. Não podia ser simples ortodoxia fria, mas um ensino vivo e experimental. Igualmente, davam uma grande ênfase à função pastoral, cujo centro era a pregação. De fato, foi com eles que surgiu o costume de colocar o púlpito e a Bíblia no lugar central das reuniões, tal como se faz até hoje na maioria das congregações evangélicas.

Entretanto, com o transcorrer do tempo, esta ênfase na doutrina correta os levou a dividir-se por questões doutrinárias não essenciais em congregações separadas e excludentes, cuja base de comunhão era a ênfase doutrinária específica que precisamente os separavam de outros irmãos (por ex: armianismo vs calvinismo). Com isto foi dado um passo decisivo para a conformação de associações de igrejas em torno de suas doutrinas especiais. Embora como vimos, fossem feitos por parte de seus líderes mais dedicados e espirituais, importantes esforços para manter a unidade dos crentes.

John Bunyan, ao contemplar entristecido as divisões que em seus dias assolavam os irmãos, escreveu o seguinte: "Posto que vocês quisessem saber por que nome eu gostaria de me distinguir de outros, digo-lhes que eu gostaria de ser, e espero que o seja, um cristão; oxalá Deus me considere digno de ser chamado cristão, um crente, ou qualquer outro aprovado pelo Espírito Santo (Atos. 11:20). Quanto a aqueles títulos facciosos de anabaptistas (batistas), independentes, presbiterianos ou semelhantes, concluo que não vêm de Jerusalém, nem da Antioquia... pois tendem naturalmente às divisões". Recordem que estas palavras pertencem a um escritor amado por todos os santos das épocas posteriores e mesmo sendo um não-conformista, recusava qualquer nome ou título que dividissem os filhos de Deus.

Diante disso, como resultado desta forte ênfase na doutrina correta, a figura do pastor -como representante e guardião da sã doutrina- se elevou até converter-se no centro das congregações não-conformistas, em detrimento, certamente, dos demais dons e ministérios no corpo de Cristo. De fato, os puritanos desenvolveram a idéia do pastor como o homem especialmente ungido por Deus para conduzir à igreja (entendida como congregação local).

Entretanto, deve-se reconhecer que, em uma época especialmente dura e complexa, os Irmãos procuraram ajustar-se da melhor forma possível à luz que encontraram na Escritura sobre a igreja, e perseveraram nela até o ponto de sacrificar tudo que possuíam, inclusive as suas vidas. Por isso permanecem na linha de muitos dos quais, antes deles, elevaram a chama do testemunho na busca de ver restaurada a igreja de Cristo sobre a terra, em toda a sua pureza original. Se houve sombras, foi devido às limitações próprias de seu tempo e circunstâncias, e não ao que não procurassem ver e obedecer à Luz com todo o seu coração. Graças a eles e seu valente testemunho a chama brilhou ainda um pouco mais.

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