Irmãos Não Conformistas na Inglaterra (1)

A parte da história da Igreja que não foi devidamente contada.

Rodrigo Abarca

Fragmentos de luz entre nuvens escuras

Durante a Reforma, os anabatistas tinham ensinado e sacrificado as suas vidas pela completa separação entre a igreja e o mundo, incluindo o poder político e civil do Estado. Uma total independência de qualquer poder deste mundo para depender somente de Cristo, a sua cabeça, tinha sido a sua meta. Em seguida, a Inglaterra se converteu no território onde estas verdades se encarnariam em numerosos grupos de irmãos que corajosamente enfrentaram o Estado e a sua determinação de estabelecer uma igreja que estivesse sob o seu controle.

Nesta história temos que encontrar com tristeza, várias vezes, a mesma confusão de luzes e sombras que caracterizou o período da Reforma. Porque de ambos os lados da disputa houve irmãos sinceros e convencidos dos seus pontos de vista. No entanto, também a intolerância por aqueles que pensavam distintamente, assim como a lealdade para os seus reis e governantes, pesou em muitos deles mais que o seu vínculo espiritual com outros irmãos que desejavam uma igreja mais pura, simples e concorde com os ensinos do Novo Testamento. Desta maneira, também na Inglaterra o Estado perseguiu a aqueles crentes que discordavam da igreja oficial e suas práticas. Estes irmãos perseguidos foram conhecidos em geral com o nome de Não Conformistas.

A Reforma na Inglaterra

Seria um engano pensar que todos aqueles dissidentes da igreja oficial constituíam um grupo organizado e homogêneo. Pelo contrário, havia entre eles vários grupos, cuja diferença radicava no grau de compromisso que concediam à igreja em sua relação com o Estado. Para entendê-los melhor, é necessário considerar primeiro as peculiares características que teve a Reforma na Inglaterra.

Diferentemente do resto da Europa, a separação da igreja católica romana não foi produzida por motivos religiosos, mas sim pela decisão política do rei Enrique VIII, que desejava divorciar-se de sua primeira esposa, Catalina de Aragón. O Papa negou-lhe o divórcio, porque a Espanha, cuja casa real Catalina pertencia, era o grande baluarte político e militar do catolicismo. Apoiado pelo arcebispo Cranmer, primado da igreja da Inglaterra, quem sustentava que a Reforma devia ser produzida fazendo do poder civil um poder superior ao eclesiástico, Enrique VIII separou a igreja inglesa de Roma, para convertê-la em uma igreja nacional, cuja cabeça suprema seria o próprio rei (ano 1531).

Como conseqüência, surgiu a Igreja da Inglaterra, que no princípio não se diferenciava em nada da sua fonte católica, exceto em sua rejeição à autoridade de Roma. No entanto, já a alguns anos, o fermento espiritual da Reforma já tinha estado atuando no país, inclusive entre muitos bispos da igreja oficial. William Tyndale tinha publicado em 1525 a sua edição do Novo Testamento em inglês, apesar da oposição do clero, e, desta maneira, abriu a porta do conhecimento das Escrituras ao povo inglês. Ainda que Tyndale tenha sido queimado na estaca na Bélgica (1536), depois de ter fugido da Inglaterra, a sua tradução provou ser uma inestimável aliada das idéias reformistas que por toda parte começavam a invadir a ilha.

Depois da morte de Enrique VIII, o seu filho Eduardo VI o sucedeu, e debaixo do seu reinado a igreja da Inglaterra se tornou definitivamente protestante quanto as suas doutrinas fundamentais, mesmo que não quanto as suas práticas, devido à influência de alguns destacados bispos, como Latimer, Ridley, Coverdale e Cranmer. No entanto, depois do seu breve reinado veio o fanático governo da católica rainha Maria, quem, por causa dos seus excessos e crueldades, foi chamada por seus compatriotas de Bloody Mary (Maria a Sanguinária).

Esta tentou afogar a Reforma em um banho de sangue, no qual milhares de crentes sofreram o martírio, inclusive os grandes bispos reformadores. Não obstante, e paradoxalmente, nada fez mais pela causa da Reforma na Inglaterra como as crueldades de Maria e o valente martírio daqueles nobres bispos. Como tinta inapagável foi gravada no coração do povo inglês as proféticas palavras que Latimer dirigiu a Ridley quando ambos enfrentaram juntos as chamas da fogueira: "Tenha ânimo, Mestre Ridley, e sejas um homem; este dia nós, pela graça de Deus, acenderemos na Inglaterra uma chama que jamais poderá ser apagada".

Depois da morte de Maria, subiu ao trono Isabel I, quem, forçada pelas circunstâncias, obrigou-se a favorecer a causa protestante da Igreja da Inglaterra, já que, sendo filha ilegítima do segundo matrimônio de Enrique VIII (rejeitado pelo Papa), nunca contou com a aprovação de Roma para reinar. Da mesma maneira, viu-se obrigada a procurar apoio nas nações protestantes contra a ameaça católica de Felipe II da Espanha. Este fato, unido aos já mencionados anteriormente, inclinou a balança de maneira decisiva para o protestantismo na Inglaterra. No entanto, também ocasionou o nascimento e a perseguição dos irmãos dissidentes, pois a Igreja da Inglaterra tinha por cabeça a Rainha, e todos os súditos do reino foram forçados por lei a permanecer nela.

Os Não Conformistas

Diante disso, muitos crentes se opuseram que a igreja tivesse por cabeça um rei humano, e não ao Senhor Jesus Cristo. Por outro lado, muitos rejeitaram a falta de conformidade com os ensinos bíblicos nas práticas da igreja oficial, que retiveram muito do ritual, a pompa e o cerimonial do catolicismo. Outros foram mais longe, e seguindo as idéias dos anabatistas, rejeitaram por completo a idéia de uma igreja submetida ao Estado, que não distinguia entre crentes e não crentes. Por último, estavam aqueles que, iguais aos anabatistas, rejeitaram o batismo de crianças, e reclamava um batismo livre e responsável como sinal característico da separação entre a igreja e o mundo.

Este estado de coisas cristalizou-se em diferentes grupos e movimentos não conformistas, que as vezes atuaram de comum acordo e em outras, em lados opostos da disputa, dependendo dos vaivens políticos da nação. Todos eles foram conhecidos como os Não Conformistas, devido a sua rejeição da igreja estabelecida pelo Estado.

Entre eles, que aprovava a existência de uma igreja estatal, mas que, não obstante, desejavam que conformasse as suas práticas à Escritura segundo os esboços formulados por Calvino, e mais ainda pelo reformador escocês John Knox, foram conhecidos como Presbiterianos. Estes, além disso, eram contra o governo episcopal, e propunham um do tipo precisamente 'presbiteriano', ainda que igualmente centralizado. Eles rejeitavam a união da igreja e o Estado, ainda que outorgassem às vezes certa relação do Estado como protetor e defensor da "fé verdadeira", foram conhecidos como "Independentes". E finalmente, aqueles que seguiam a visão mais radical dos anabatistas, e rejeitavam qualquer tipo de união ou proteção do Estado, e também rejeitavam o batismo de crianças, e foram conhecidos como Separatistas e, também, "Batistas". É obvio, as linhas de separação entre todos estes nem sempre foram nítidas, pois se tratava de uma época em que muitos procuravam a verdade nas diversas facções cristãs.

Tanto independentes como os batistas rejeitaram qualquer governo eclesiástico em cima de cada congregação particular de crentes, fora episcopal ou presbiteriano, e por isso foram conhecidos também como "congregacionalistas". Foi através deles que veio a idéia de que cada congregação deve ser considerada como uma igreja autônoma e independente de qualquer governo superior, seja este eclesiástico ou político.

Na verdade eles viram na Escritura um princípio até então esquecido: que no Novo Testamento cada congregação ou igreja era independente das demais em governo e administração, tendo a Cristo como cabeça, ainda que mantivessem entre elas laços de irmandade e comunhão. Assim, um importante passo na restauração da igreja foi dado naqueles anos pelos assim chamados irmãos Não Conformistas. Não obstante, como veremos em seguida, aqui também estava à origem do moderno denominacionalismo evangélico, com todas as suas inumeráveis e dolorosas divisões.

Todos estes grupos compartilhavam um ideal de pureza, santidade e espiritualidade, tão individual como congregacional, por cuja causa foram também conhecidos genericamente como "Puritanos". Seu interesse principal foi a existência de uma igreja pura, espiritual, livre de tradições humanas, e originada em congregações livres para seguir ao Senhor conforme à direção de sua Palavra e do seu Espírito. Davam, da mesma maneira, uma ênfase central à pregação da Palavra, mas não realizada de uma maneira formal e convencional, mas inspirada e profética. De fato, muitos deles empregavam a expressão "profetizar", tirada de 1ª Coríntios 14, em lugar de "pregar". E todos eles aderiam fervorosamente às doutrinas reformadas, e, além disso, davam uma grande ênfase na vida e na experiência, ao invés do conhecimento meramente acadêmico e intelectual das mesmas.

Igrejas independentes e perseguições

Existem registros de que existiam em Londres igrejas não conformistas no ano 1555, durante o reinado de Isabel I. Também havia em outras partes da Inglaterra, muitas das quais chegaram a estar mais tarde associadas com os ensinos de Robert Browne.

Este tinha estudado em Cambridge e se convertido em um puritano favorável à idéia de uma igreja estatal. Mas, por razões desconhecidas, quando tinha ao redor de 30 anos, a sua perspectiva experimentou uma mudança radical. Em 1581, ele e outros amigos estabeleceram uma igreja independente em Norwich. Logo o seu ensino atraiu sobre ele e aquela congregação a perseguição do Estado, pois a dissensão da igreja oficial era proibida e castigada com a prisão ou a morte. Portanto, ele e uma grande parte da congregação fugiram da Inglaterra e se refugiaram na Holanda, que na ocasião tinha se convertido em refúgio de muitos cristãos dissidentes da igreja estatal, chegados de diversas partes da Europa.

Da Holanda, Browne continuou escrevendo textos que mostrava como a igreja consiste em companhias de crentes unidas através de sua comunhão com Cristo. Cada congregação deve estabelecer os seus próprios ofícios pelos quais deve ser governada (pastores e diáconos), de uma maneira totalmente independente, ainda que estreitamente vinculada com outras congregações por laços espirituais de amor.

Em 1583, dois homens foram enforcados na Inglaterra por distribuir a sua literatura, enquanto que os seus livros foram queimados. Apesar de tudo Robert Browne retornou para a Inglaterra, onde, depois de ser perseguido e caçado, foi preso. Ali a sua mente e o seu corpo paralisaram afinal por causa do intenso sofrimento que teve que suportar. Aceitou retornar por força à igreja oficial, onde permaneceu até a sua morte no ano 1633.

Todo tipo de dissensão da igreja oficial foi proibida e perseguida: presbiterianos, e em especial independentes e batistas. Centenas e possivelmente milhares morreram no cárcere devido aos maus tratos, as más condições de vida e as enfermidades que sofreram ali dentro.

Outras figuras proeminentes entre os independentes foram Barrowe, Greenwood e Penry. Os dois primeiros foram enforcados por sustentar que o único caminho correto para aqueles que não criam que a igreja estatal fosse bíblica, era separar-se dela. E que também se tornava desonroso para um homem aprovar aquilo que não cria, e aceitar inclusive uma posição dentro daquilo e receber, além disso, um pagamento (em referência à igreja estatal). Por outro lado, Penry foi comovido pela condição miserável das pessoas em Gales, e trabalhou infatigavelmente entre eles pregando, e estimulando a outros a fazer o mesmo. Era um homem de caráter santo, amável e compassivo, por isso foi muito estimado entre as pessoas comuns a quem servia. Teve muito êxito na conversão e edificação de numerosos crentes em Gales, Escócia e Inglaterra, dentro de congregações 'independentes'. Mas isto atraiu para si a inveja e a inimizade do clero galês. Capturado finalmente em Londres, foi enforcado pouco depois dos seus companheiros de trabalho.

A igreja que estes irmãos ajudaram a estabelecer em Londres foi conhecida como "Privye Church". Reuniam-se sobre o princípio de "dois ou três reunidos no nome do Senhor", em diferentes casas, ou ao ar livre. Em 1567 foram surpreendidos enquanto celebravam uma das suas reuniões e quatorze dos seus membros foram encarcerados.

Em 1592, cinqüenta e seis foram capturados em outra reunião de adoração. Muitos deles passaram longos anos na prisão, encerrados em escuros calabouços, aprisionados com grilhões e cadeias, no mais completo abandono e miséria. Um total de 41 irmãos dentre eles morreram na prisão no transcurso de vários anos de perseguições.

A posição da Igreja Oficial

A defesa oficial da Igreja da Inglaterra foi levada a cabo pelo bispo Richard Hooker, em oposição às colocações não conformistas, em seu livro "Política Eclesiástica". Torna-se ilustrativo conhecer as suas idéias, pois nelas se resumem claramente os principais argumentos daqueles que rejeitam qualquer mudança da ordem neotestamentaria da igreja, e que advogam pela flexibilidade e a acomodação às "circunstâncias históricas" do mesmo.

Descrevendo as colocações não conformistas diz: "Sem dúvida o primeiro estado das coisas foi o melhor, que no princípio da religião cristã a fé foi mais pura, as Escrituras de Deus melhor entendidas por todos os homens... como conseqüência segui-se por necessidade que os costumes, leis e regulamentos fabricados depois não são boas para a Igreja de Cristo; mas, que o melhor caminho é cortar por completo as invenções posteriores e reduzir as coisas ao antigo estado em que estiveram no princípio".

E sua resposta a esta posição foi à seguinte: "Assim que ao vincular a Igreja às ordens do tempo dos apóstolos, atam-na a uma regra incrivelmente incerta; eles ordenam que não se observe nenhuma ordem, salvo aquelas que possam ser reconhecidas como apostólicas por meio dos próprios escritos apostólicos... Estou seguro de que o significado destas não é que deveríamos congregar o nosso povo em reuniões secretas e fechadas para servir a Deus; ou que os rios e arroios deveriam ser usados para batizar; ou que a eucaristia (Ceia do Senhor) deveria ser ministrada depois de uma refeição; ou que o costume de que a igreja festeje junta deveria ser renovada; ou que toda classe de provisão econômica estatal para o ministério deveria ser completamente abolida, e a sua situação deveria depender outra vez da devoção voluntária dos homens. Nestas coisas percebemos quão inadequado é no presente o que foi conveniente no início. A fé, o zelo e a piedade dos primeiros tempos são dignas de ser honradas. Mas, isto prova que as ordens da Igreja de Cristo devem ser ainda adaptadas a elas; que então nada pode ser a menos que tenha sido; ou que, desde que estes costumes cessaram, nada posterior é aceitável?".

Nesse caso, o assunto só podia ser respondido à partir de outra pergunta: As formas do Novo Testamento eram circunstanciais, temporais e produto da contingência, ou expressavam de um modo único e verdadeiro a natureza da Igreja? Uma cuidadosa e independente revisão do Novo Testamento, feita em um espírito de obediência, levou a muitos irmãos a compreender que não se tratava de princípios circunstanciais, mas sim da própria essência da igreja. Por isso, o retornar não só à doutrina do Novo Testamento, mas também aos seus princípios e formas de organização e funcionamento, era vital. A vida tem a sua maneira própria e única de crescer e desenvolver-se, e nenhuma circunstância histórica pode justificar o desenvolvimento de estruturas e instituições extra-bíblicas para contê-la, pois isso significaria, em longo prazo, suprimi-la, tal como a história da Igreja se encarregou de demonstrar várias vezes.

Certamente, naquele tempo, como sempre acontece nestes casos, havia diferentes graus de luz e muita confusão. Distintos e opostos pontos de vista eram sustentados por irmãos igualmente honestos e sinceros em sua fé. Isto não se pode julgar nem condenar. O que resulta, no entanto, injustificável, é o espírito de ressentimento, intolerância e rancor que acompanhou toda disputa.

O poder político e a graça divina são basicamente incompatíveis. Quando um e o outro se encontram unidos, a graça, a compaixão e a misericórdia desaparecem, deixando lugar a um espírito implacável e carente de misericórdia. Pois o Estado tem os seus próprios fins, completamente alheios aos fins do evangelho. A igreja sofreu muito ao longo dos séculos devido ao esquecimento, descuido ou rejeição desta verdade.

Nesta estranha, complexa e, em ocasiões, trágica história da igreja na Inglaterra, encontramos na origem de quase tudo o que hoje conhecemos como cristianismo evangélico, com todas as suas luzes e sombras. Os diferentes graus de associação com o Estado, do compromisso anglicano quase total no que se refere à organização e governo (ainda que não quanto à doutrina); passando pela idéia presbiteriana de um Estado cristão mais flexível, mas possivelmente ainda muito comprometida; até a independência total das igrejas congregacionalistas, com dois possíveis caminhos a seguir: o denominacionalismo evangélico, ou as igrejas neo-testamentarias. O primeiro caminho foi seguido quase invariavelmente pelos crentes independentes que vieram depois daquela época. O segundo deverá esperar por muito tempo mais.

No entanto, aquele tempo foi testemunha de como muitos irmãos levantaram a chama da restauração no meio de uma grande adversidade e oposição, e se sacrificaram da mesma forma a muitos antes deles, por serem fiéis à igreja delineada nas páginas do Novo Testamento. Neles podemos descobrir o rio secreto do Espírito que fluiu através dos séculos para manter sempre sobre a terra o testemunho de Deus. Mais adiante veremos como esse testemunho irá se tornando cada vez mais explícito. (Continuará).

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