Graça e reino

O evangelho nos dá uma síntese perfeita de graça e reino.

Roberto Sáez

"…Viu a um publicano chamado Levi, sentado no banco dos tributos públicos, e lhe disse: Segue-me. Este, deixando tudo, levantou-se e o seguiu" (Lc. 5:27-28). "No dia seguinte outra vez estava João, e dois dos seus discípulos. E olhando para Jesus que andava por ali, disse: Eis aqui o Cordeiro de Deus. Ouviram-no falar os dois discípulos, e seguiram a Jesus" (Jn. 1:35-37). "…dar testemunho do evangelho da graça de Deus" (At. 20:24). "Percorreu Jesus toda Galiléia, ensinando nas sinagogas deles, e pregando o evangelho do reino…" (Mt. 4:23).

Os que crêem obedecem, os que obedecem crêem

Dietrich Bonhoeffer, em seu livro "Discípulos", mostra esta diferença no cristianismo que era vivido no tempo da Segunda Guerra Mundial.

A ênfase: "Os que crêem, obedecem" está representado pelos que enfatizam a graça. A ênfase: "Os que obedecem, crêem" está representado pelos legalistas. Aqui se aprecia com clareza como duas ênfases bíblicas que são verdadeiras, terminam distorcendo o sentido das Escrituras.

As duas afirmações são corretas, porque fé e obediência são verdades que o Senhor espera que se cumpram em seus discípulos, mas quando as separam, os discípulos são conduzidos a uma passividade ou a um ativismo. Pois a "graça barata", como chama Bonhoeffer à fé sem obediência, conduz à passividade, e a ênfase na obediência conduz ao ativismo das obras da carne.

Estas mesmas ênfases estão em todo o Novo Testamento. Quando não se tem revelação da verdade completa, mas somente parcial, as separam e as enfatizam de um modo, criando correntes quase antagônicas no cristianismo.

Os evangelhos mencionam "o evangelho do Reino". Paulo nos Atos dos Apóstolos menciona "o evangelho da Graça". Há dois evangelhos? Não. O evangelho é um só, porque o evangelho é o Senhor Jesus Cristo.

O evangelho da graça

Só que ao enfatizar a graça, apresentamos a Cristo como o Cordeiro em sua gestão redentora, dando-se a si mesmo em resgate pelos pecadores, não exigindo mais do que a fé. A fé é a ferramenta que apropria todo o bem de Deus, outorgado por puro amor a quem vier a Cristo para receber os múltiplos benefícios dispensados pelo Pai. A graça opera do céu, precisamente, para os pecadores que estão mortos em seus delitos, não podendo fazer nada por si mesmos, não tendo mérito algum para serem agraciados, pelo contrário, porque estão invalidos, devido a sua condição de morte e condenação; Deus mostra o seu amor, através da morte do Cordeiro, propiciando a salvação inteiramente por graça e sem custo algum para o pecador.

Deus fez que Cristo se tornasse para nós "sabedoria, justificação, santificação e redenção" (1ª Cor. 1:30) Paulo guiou os cristãos ou seja que em Cristo estão completos, que nele temos tudo e que "nada nos falta em nenhum dom" (1ª Cor. 1:7)

A graça tudo dá de pura graça; a graça, ao contrário da lei, não exige condições, a fé é suficiente para receber "a abundância da graça e o dom da justiça" (Rom. 5:17). Receber é crer. Toda esta operação é efetuada pelo Espírito Santo no coração dos que se unem a Cristo, sem responsabilidade nem esforço algum por parte dos crentes, apenas a fé.

Quando se enfatiza a graça, necessariamente se enfatiza a fé e o Espírito, pois estas categorias de palavras andarão sempre juntas; e, ao contrário, quando se enfatiza a obediência à lei, enfatizam-se também as obras e a carne, sendo estas três categorias de palavras um bloco inseparável. No entanto, o evangelho é um só e precisamos compreendê-lo em sua totalidade.

A ênfase no evangelho da graça se resume na frase: "os que crêem, obedecem" ou "os verdadeiros crentes são os que obedecem". Com isto quer dizer que a fé vem primeiro e a obediência vem depois, como um fruto da fé. Paulo fala da obediência à fé (Rom. 1:5). O que é o que envolve a mensagem da fé? Receber a Jesus Cristo em sua totalidade: "No evangelho, a justiça de Deus se revela por fé e para fé, como está escrito: Mas o justo, pela fé viverá" (Rom. 1:17). O pensamento de Paulo é que o evangelho começa com fé, e segue em fé durante toda a carreira do cristão.

O evangelho do reino

Ao contrário disso, a ênfase no evangelho do reino está representada pela frase: "Os que obedecem são os verdadeiros crentes", para o qual é citada uma série de textos bíblicos para fundamentar (da mesma forma que na ênfase da graça) tal afirmação.

Temos o caso de Mateus, a quem Jesus lhe diz: "Vêm e segue-me". Este, imediatamente, deixou o que estava fazendo e o seguiu. O que foi primeiro neste caso… a fé ou a obediência? Primeiro a obediência, mas sobre a base de que Mateus creu que Jesus era o Messias - e que está implícito na história da sua chamada.

O caso daquele discípulo ao qual o Senhor manda pregar o reino, mas ele se desculpa que primeiro deve atender a seu pai até que morra; a este, Jesus lhe diz: "Segue-me; deixa que os mortos enterrem os seus mortos" (Mat. 8:22). Este discípulo tinha uma medida de fé no Messias, mas não tinha revelação em relação ao valor do reino. Considerava que cuidar do seu pai até a velhice era mais importante que anunciar o reino. Os discípulos têm que saber que a primeira coisa em suas vidas é o Rei, e logo as demais coisas virão como acréscimos.

No evangelho do reino apresentamos a Jesus como o Rei; sendo assim, tem todo o direito de exigir e mandar que os seus discípulos lhe obedeçam, que lhe sigam por qualquer lugar que ele vá.

O chamado do Rei a uma entrega e obediência absoluta, implica primeiro, que aquele que vai seguir saiba a quem está seguindo, mesmo que não entenda tudo - recordemos que a esperança do Messias era uma fé de todo verdadeiro israelita, assim que, entregar-se a ele implica aceitar que Jesus, verdadeiramente era o Messias, e isto era um fato de fé em primeiro lugar.

O que o Rei exige primeiro ele deu em graça; não há nada que ele nos peça, que antes não o tenha dado. A ênfase na obediência é correta, como também o é na graça, porque tudo o que Jesus requer não podemos lhe negar, pois ele tem todo o direito de ordenar aos seus discípulos obediência total.

O Rei sabe que não pode enviar os seus servos em suas próprias forças; sabe que têm que ser capacitados. Neste aspecto a graça brilha, pois por ela os discípulos estarão em condições de dar a sua vida por seu mestre.

Não há contradição entre a graça e a lei. A graça outorga, a lei exige; só que agora, em Cristo, a lei exige o que a graça dá. Por esta razão, Paulo assinala que agora, na graça, "a justiça da lei se cumpre em nós, que não andamos segundo a carne, mas segundo o Espírito" (Rom. 8:4).

Quando a Paulo perguntavam se agora, por estar debaixo da graça seguiríamos pecando, ele respondia: "De maneira nenhuma", porque estar debaixo da graça é estar sob Cristo e sendo assim: "tudo posso em Cristo que me fortalece" (Fl. 4:13). Esta é a onipotência da graça, que capacita o discípulo a obedecer em tudo ao seu Senhor.

No Antigo Testamento, os crentes estavam debaixo da lei. Aquele era um regime de obras apoiado nos esforços da carne. Deus o instituiu assim para que o povo de Israel e as gerações vindouras soubessem que a carne não tem solvência moral para cumprir os requisitos da vontade divina. O regime da lei pôs a prova o homem em geral, e ficou demonstrado que "os intuitos da carne… não se sujeitam à lei de Deus, nem tampouco podem" (Romanos 8:7).

Deus tirou o regime da lei e nos transportou para o do Espírito, o que não significa que a lei desapareceu, mas o que desapareceu foi o regime. O regime da letra, da lei foi trocado pelo regime do Espírito. A lei não pode desaparecer porque a lei é o caráter de Deus, como Cristo é a imagem de Deus. A lei foi encarnada em Cristo e cumprida por ele. Agora, como Cristo é a nossa vida, nele foi dada a lei para vivê-la no Espírito.

Antes, a lei estava fora de nós, hoje está dentro. As leis cerimoniais desapareceram, porque em Cristo as sombras do símbolo encontraram o seu cumprimento, mas a lei moral não pode desaparecer porque é o caráter de Cristo. Olhe para o Sermão da Montanha e verás que a lei que Jesus dá aos seus discípulos é mais alta que a lei do Antigo Testamento. Os discípulos são chamados a obedecerem aquelas leis externas que estão gravadas pelo Espírito em nossas mentes e em nossos corações. O Espírito Santo está imprimindo o caráter de Cristo nos seus discípulos.

Os efeitos da fé e da obediência

Se enfatizarmos a fé, necessariamente enfatizamos a graça; se só apresentarmos o evangelho da graça, sem apresentar o evangelho do reino, estaremos apresentando uma "graça barata", já que na graça, verdadeiramente, tudo nos foi dado gratuitamente, sem responsabilidade daquele que a recebe.

Muitos cristãos, ao ouvir o chamado da graça, ficaram estancados e, portanto, passivos em sua vida cristã. Isto é porque lhes foi pregado a metade do evangelho.

Na parábola do tesouro escondido, Jesus assinala a necessidade dos discípulos de vender tudo para adquirir aquele campo, a fim de possuir o tesouro. Vender é renunciar a este mundo, a família, aos bens e ainda a própria vida, tomar a cruz cada dia e seguir a Cristo. Este é o custo de seguir a Cristo. Vale a pena. Todo o resto é legítimo e de valor, mas, ao compará-lo com o preço de Cristo, aquilo é como nada: "Mas o que para mim era lucro passei a considerá-lo como perda por amor de Cristo" (Fil. 3:7).

Na parábola da pérola de grande preço, Cristo é o Mercador que procura boas pérolas, que tendo achado uma de grande preço vendeu tudo o que tinha e a comprou. Esta pérola é a igreja, pela qual Jesus se despojou de si mesmo, a fim de obter para si o que ele considera de maior valor. O que ele pede de nós, primeiro ele nos deu.

Por outro lado, se enfatizarmos a obediência, sem a graça, faremos que os discípulos se voltem para as obras, cairemos em um regime legalista, cheio de obras e esforços humanos. Um ativismo desenfreado, com restrições, opressões, fadiga e cansaço, é o que se vê em muitos cristãos sujeitos a um regime desta natureza, enfastiados de um cristianismo opressor, sem vida, cheio de estruturas, sistematizado, metódico, centrado na sujeição e autoridade.

Veja o dano que produz ao povo de Deus colocar esta ênfase em separado. A verdade completa, o evangelho completo, consiste em pregar e ensinar a Jesus Cristo como Cordeiro e como Rei. As duas verdades andam juntas. Como Cordeiro, ele dá tudo, como Rei ele exige tudo.

O exemplo de João Batista

Precisamos pregar o evangelho como um todo. A maior necessidade dos pecadores é ter um encontro com a autoridade de Deus, é reconhecer o Senhorio de Cristo em suas vidas. Mas recordem: se escutarem somente as exigências, sem ouvir da sua condição e ruína moral frente a um Deus de amor que se compadece e tem misericórdia outorgando graça para levantá-los, a fim de configurar neles a restauração de sua imagem, não encheremos a medida do que Deus deseja realizar através do discipulado.

João Batista é um excelente referencial de como devemos fazer discípulos. Os dois discípulos de João o ouviram falar de Jesus, e seguiram a Jesus. Isto é o que todos temos que fazer.

Ninguém tem o direito de ter discípulos, Cristo é o único. Nós os que servimos a Jesus somos o amigo do esposo, não o próprio esposo. Deixemos que Cristo seja o único noivo da igreja, não caiamos no adultério espiritual de roubar os afetos da noiva para com o noivo, não permitamos que os discípulos nos sigam. Apresentemos sempre a Cristo.

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