ÁGUAS VIVAS
Para a proclamação do Evangelho e a edificação do Corpo de Cristo
Retornando para Cristo
A carta do Senhor à igreja em Éfeso revela o começo da decadência.
Rubén Chacón
Quando alguém olha o livro de Atos e vê toda a glória da Igreja do primeiro século - uma igreja que todos até o dia de hoje sentimos saudades e admiramos- é difícil aceitar que essa igreja, assombrosamente, no final do primeiro século, começou a decair. E João, o único dos apóstolos vivos, sobrevivente dos Doze, coube-lhe presenciar essa decadência. Deus quis preservá-lo até esse tempo, para que ele a contemplasse. Mas não só para que contemplasse essa decadência, mas, sobretudo para que nos mostrasse o caminho de volta. Louvado seja o Senhor!
João, sendo provavelmente o mais jovem dos apóstolos, foi - não obstante - o último a ser levantado por Deus para falar. Antes dele, falaram o apóstolo Pedro e especialmente o apóstolo Paulo. Mas estes dois já tinham partido; deram as suas vidas por Cristo aproximadamente lá pelo ano 67 d. C. João tinha sobrevivido e é muito provável que fosse o único sobrevivente dos doze apóstolos. Transcorreram - depois de Pedro e Paulo - entre 25 e 30 anos. Muitas coisas aconteceram e mudaram durante estes anos. João era um ancião de quase cem anos, e então se ergue para falar.
Pelo que parece, a partir da morte de Paulo, o apóstolo João sentiu a responsabilidade de sucedê-lo de alguma maneira. De fato, segundo o testemunho dos pais apostólicos, o apóstolo João se estabeleceu precisamente em Éfeso depois da morte de Paulo. Ali teria escrito as suas três cartas lá pelos anos 85-95 d. C.
Portanto, são as cartas de João e seu Apocalipse que relatam com mais exatidão a decadência.
As cartas juaninas demonstram que a essa altura da história da igreja os falsos mestres surgiam pelas igrejas, o espírito do anticristo já tinha aparecido no mundo e a filosofia grega com seu racionalismo estava substituindo a revelação.
Mas a grande contribuição do apóstolo João para a totalidade da revelação divina não é tanto em que Deus o deixou vivo para presenciar o início da decadência da igreja do primeiro século, mas que frente a este fato, revela a solução para o problema. Mas não só nos apresentará o caminho para retornar à normalidade, mas, além disso, no glorioso Apocalipse de Jesus Cristo, viu e profetizou a restauração completa da igreja. O seu testemunho foi que sob um céu novo e uma terra nova "...eu João vi a santa cidade, a nova Jerusalém, descender do céu, de Deus, adereçada como uma esposa ataviada para o seu marido" (Apoc. 21:2).
O Apocalipse de João contém sete cartas do Senhor Jesus Cristo a sete igrejas da Ásia: Éfeso, Esmirna, Pérgamo, Tiatira, Sardes, Filadélfia e Laodicéia. O que nos chama a atenção é que das sete igrejas, somente duas não recebem recriminação da parte do Senhor. As cinco restantes não têm a aprovação divina. Este fato confirma a situação de decadência que já experimentavam as igrejas no final do primeiro século.
Éfeso, a primeira carta
Ao falar de Éfeso, estamos falando de uma igreja do primeiro século que foi escolhida pelo Espírito Santo como exemplo para falar o que o Espírito queria dizer às igrejas de todos os tempos. Além disso, foi escolhida em primeiro lugar dentre as sete. Por conseguinte, se o que tivermos nestas sete mensagens às sete igrejas seja o espectro completo dos possíveis estados espirituais de qualquer igreja em qualquer época, então, o fato da mensagem à igreja de Éfeso se apresentar em primeiro lugar, indica que aqui encontramos o princípio da decadência da igreja. A igreja do primeiro século começou a decair quando perdeu o seu primeiro amor. Neste sentido, Laodicéia representa o último estado em que pode cair uma igreja que perdeu o seu primeiro amor: Deixar Cristo fora dela.
Se o estado espiritual da igreja de Éfeso representa em termos gerais a realidade de toda a igreja do primeiro século, podemos dizer, então, que o primeiro amor na igreja começou a ser perdido no final do primeiro século. Por isso, seria pertinente perguntar-nos se o primeiro amor tem sido parte da nossa experiência de igreja, ou é, por melhor dizer, uma verdade ainda a ser restaurada? É inegável que a partir da Reforma protestante, o Senhor começou a sua obra de restauração. A justificação pela fé, a cura divina, o batismo no Espírito Santo, os ministérios e outros, são verdades que claramente o Senhor restaurou para a sua igreja. Mas podemos dizer com a mesma clareza que o primeiro amor também foi? A resposta a esta pergunta dependerá, obviamente, pelo que entendemos ser o primeiro amor.
A qualidade da igreja de Éfeso
Vejamos. Que espécie de igreja era Éfeso quando o Senhor teve que lhe reprovar a perda do seu primeiro amor? Se não tivéssemos a Escritura, parecer-nos-ia que Éfeso era uma igreja mundana, fria, carnal, preguiçosa, etc. Parecer-nos-ia que depois do Senhor dizer a esta igreja: "Eu conheço as suas obras", o que encontraríamos seria algo assim: "Conheço o seu ciúmes, as suas divisões, as suas carnalidades, os seus pecados sexuais, etc.". Mas, é isto o que encontramos? Não, decisivamente não. O que encontramos é uma descrição tão impressionante, que ela nos parece ser o modelo de espiritualidade que toda igreja aspira e deve aspirar. Não te parece?
As obras desta igreja são: Conheço "o seu árduo trabalho e a sua perseverança, e que não pode suportar os maus, provaste os que se dizem ser apóstolos e não o são, e os achaste mentirosos. Sofreste, foste perseverante, trabalhaste arduamente por amor do meu nome e não desfaleceste". Também tem isto: "que aborreces as obras dos nicolaítas, as quais eu também aborreço". Nesta descrição não há indícios de carnalidade nem de mundanalidade; o que há aqui é maturidade, santidade, discernimento, moderação, estabilidade. Todas são qualidades destacáveis, dignas de imitar, recomendáveis para a igreja de todos os tempos. Haverá algo melhor ou maior do que isto?
A nossa situação
Diante disso, se esta for a igreja que o Senhor reprovou por ter perdido o seu primeiro amor, o que fica para nós? Você percebe que ter perdido o primeiro amor não é algo tão grosseiro como pensávamos? Não é algo tão simples; pelo contrário, é algo profundo. E estou seguro que nem a própria igreja de Éfeso estava consciente do seu verdadeiro estado. Só aquele que caminha no meio dos sete candelabros de ouro, o nosso bendito Senhor Jesus Cristo, podia ver e revelá-lo.
Se nós não temos neste momento esta qualidade de igreja como Éfeso - e tampouco na forma anterior - a pergunta então é: O primeiro amor para nós seria algo que perdemos ou que alguma vez tivemos? Hoje também o Senhor da igreja nos diz: "Eu conheço as tuas obras", e você sabe o que segue no seu caso. Você crê que é um pouco parecido a Éfeso? Você crê que o que nos diria seria um pouco parecido a Éfeso? E se não é assim, temos o primeiro amor então como a nossa experiência?
A perda do primeiro amor, algo grave
Por outro lado, a admoestação do Senhor a esta igreja revela que a perda do primeiro amor, apesar de todas as virtudes, não é algo pequeno, mas de uma grande gravidade. O Senhor lhe diz: "Lembra, portanto, de onde caístes, arrepende-te e faz as primeiras obras, pois se não te arrependeres, logo virei a ti e tirarei do seu lugar o teu candeeiro". Frente a tal exortação Éfeso não pode dizer: "O que é um defeito entre tantas virtudes? ... Além disso, quem é perfeito?". A perda do primeiro amor é de uma gravidade tal que, caso não seja corrigido, significará mais cedo ou mais tarde o desaparecimento da igreja. Aos olhos de Deus, esta igreja não tem outro remédio a não ser arrepender-se; do contrário, o candeeiro dela será tirado do seu lugar. O que o Senhor quis dizer com isto?
Segundo o capítulo 1 de Apocalipse, os sete candeeiros são as sete igrejas. Portanto, o que o Senhor quis dizer à igreja de Éfeso é que a sua perda da visão do Senhor -se não se arrependessem- lhes faria perder a essência da igreja. Em outras palavras, deixariam de ser igreja. Provavelmente seguiriam existindo, como qualquer outra coisa, menos como igreja de Jesus Cristo.
A perda do primeiro amor significou nada mais nada menos que uma queda. "Lembra de onde caístes". 'Antes estava no topo; agora está no vale'. Mas qual era definitivamente o problema? No que consiste o primeiro amor? Para responder estas perguntas sugiro irmos ao contexto geral do livro por partes.
A revelação de Jesus Cristo
Em primeiro lugar, a forma em que Jesus Cristo se apresenta a cada igreja corresponde a sua necessidade. Quer dizer, a revelação de Jesus Cristo para essa igreja específica, não só revela o problema ou o pecado dela, como também provê a solução. Pois bem, como apresenta Jesus Cristo à igreja em Éfeso? Como "o que tem as sete estrelas em sua mão direita" e como "o que caminha no meio dos sete candeeiros de ouro". Já vimos que esta última oração significava que só o Senhor Jesus Cristo conhecia verdadeiramente o estado das igrejas. Mas a expressão "o que caminha no meio" indica também que Jesus Cristo é o centro da igreja. Portanto, a perda do primeiro amor teria relação com o fato que Jesus Cristo já não era o centro da igreja. Mais exatamente, que o amor a Cristo tinha deixado de ser a motivação central e fundamental da igreja.
O primeiro amor é fruto da árvore da vida
Em segundo lugar, na promessa final da carta, o Senhor promete ao vencedor, isto é, ao que se arrepende e volta para as primeiras obras, lhe dar "a comer da árvore da vida, que está no meio do paraíso de Deus". Por que esta promessa?
Porque a árvore da vida representa o viver por meio da vida divina. Se a igreja de Éfeso tinha deixado o seu primeiro amor, isto é, o amor de Cristo, quer dizer então, que o que em definitivo tinha abandonado esta igreja era esse viver por meio da árvore da vida; porque a vida de Deus se expressa essencialmente no amor. Mas não estamos falando aqui de qualquer amor, mas do amor de Cristo, do amor divino. A igreja de Éfeso tinha deixado de comer da árvore da vida e, ao fazer isso, tinha deixado de viver no primeiro amor. O primeiro amor é o amor que lhe devemos por primeiro, o qual é Cristo. Mas esse amor é impossível manifestá-lo sem a árvore da vida. Esse amor não é nosso fruto, não é um fruto que nós possamos produzir - é o fruto do Espírito.
A vida é fruto da comunhão com Cristo
Em terceiro lugar, como é que a igreja de Éfeso deixou de comer da árvore da vida? A resposta é uma só: Deixou a comunhão com o Senhor Jesus Cristo, deixou a dependência dele. No início quando começou, esta igreja tinha dependido absolutamente de Deus para a sua salvação. E logo que começou a caminhar como não sabia nada e vivia em uma ignorância santa, a sua dependência do Senhor era total. Mas agora esta igreja tinha quarenta anos de idade. Com o tempo aprendeu a fazer as coisas, aprendeu a caminhar sozinha, sabe pregar, sabe evangelizar, sabe orar. A dependência do Senhor se tornou relativa e - ao deixar pouco a pouco de viver por meio da vida divina e, portanto, do primeiro amor - teve que começar a sustentar-se por suas próprias forças, e a motivação central para fazer o que fazia - por não ser o primeiro amor - foi o dever, a responsabilidade e a obrigação.
Portanto, embora as obras desta igreja fossem exteriormente perfeitas, tinham uma fissura mortal, caso não fosse corrigida rapidamente traria a ruína total. Porque a pergunta é a seguinte: Se o nosso serviço ao Senhor não é sustentado no amor a ele, quanto tempo nos sustentará o dever, a responsabilidade, a obrigação ou qualquer outra motivação?
A igreja de Tessalônica
Neste sentido, é interessante comparar esta igreja de quarenta anos com a de Tessalônica, por exemplo, que tinha seis meses de idade, aproximadamente, quando o apóstolo Paulo escreveu-lhe a sua primeira carta. No versículo 1:3 Paulo lhes diz: "lembrando-nos sem cessar diante de Deus e nosso Pai da obra da vossa fé, do trabalho do vosso amor e da vossa perseverança na esperança em nosso Senhor Jesus Cristo". É interessante notar que Paulo menciona as mesmas três coisas que Éfeso: Obras, trabalho e perseverança. Mas aqui a ênfase está na fé, no amor e na esperança.
Os tessalonicenses não têm simplesmente obras, mas sim obras da sua fé; não têm somente trabalho, mas trabalho do seu amor; não têm apenas perseverança, mas perseverança na esperança. Vê a nuança? Isto se faz mais claro ainda quando olhamos para a carta que o próprio Paulo escreveu aos efésios. A igreja de Éfeso tinha 8 anos de idade aproximadamente quando Paulo lhes escreveu. Em 1:15 Paulo diz: "Por esta causa também eu, tendo ouvido da vossa fé no Senhor Jesus e do vosso amor para com todos os santos...que ele ilumine os olhos do vosso entendimento para que saibais qual é a esperança para que ele vos tem chamado...". Aqui a ênfase é tal na fé que as obras não são mencionadas -estão implícitas-, menciona-se o amor mas não o trabalho, e é mencionada a esperança, mas não a perseverança. Mas 32 anos depois somente há obras, trabalho e perseverança. Não há nenhuma menção de fé, amor ou esperança. A palavra amor do versículo 3 (de Apocalipse 2) não está no texto grego.
As primeiras obras
A chave, então, para a igreja de Éfeso, estava não só em que recordasse de onde tinha caído e que se arrependesse, mas especialmente que voltasse a fazer as primeiras obras. E quais eram estas? Já dissemos que esta igreja no princípio vivia em uma dependência absoluta do seu Senhor. E como expressava a igreja esta dependência? Que fazia da comunhão com a cabeça da igreja a sua atividade principal e prioritária. Não tinha apenas comunhão com o Senhor, mas também esta era a sua primeira obra. Quando a mulher de "Cantar dos cantares" descobre a causa da sua 'negrura', diz: "Não repareis em eu ser morena, porque o sol me olhou. Os filhos da minha mãe se iraram contra mim; puseram-me a guardar as vinhas; e a minha vinha, que era minha, não guardei" (1:6).
O problema está em que estivemos ocupados no trabalho das vinhas e descuidamos da nossa própria vinha. E, qual é a nossa vinha que jamais devemos ser descuidados e que explica a nossa 'negrura'? Essa vinha é Cristo; a nossa comunhão pessoal com ele. Não há problema em cuidar das vinhas da obra do Senhor contanto que não descuidemos do Senhor da obra. Ele é a nossa prioridade. O Senhor não só é a minha vinha, mas também a primeira vinha.
A respeito disso, nos chama a atenção que o principal obstáculo que temos para procurar juntos ao Senhor é a impossibilidade prática de juntar-nos. Nossas agendas estão tão ocupadas e estamos tão cheios de atividades, que literalmente não temos tempo para a comunhão com o Senhor da obra. Irmãos! Apercebemo-nos da gravidade do que está acontecendo conosco? Nós precisamos também ouvir o que o Senhor Jesus Cristo disse à igreja de Éfeso.
A inspiração bendita das Escrituras pelo sopro de Deus quis que destas sete mensagens às igrejas, a de Éfeso fosse posta em primeiro lugar, e eu creio que isso tem um propósito. Assim como também tem um propósito que a mensagem a Laodicéia esteja posto em último lugar.
Então, o fato de que Éfeso esteja em primeiro lugar -uma igreja a qual é reprovada por ter abandonado o seu primeiro amor- é para que ficasse claro a todos nós que a decadência começou no dia em que ela começou a abandonar o seu primeiro amor. Se não houvesse o versículo 4, que registra esta recriminação, esta seria uma carta extraordinária. E vocês leiam a carta aos Efésios, escrita pelo apóstolo Paulo, que também é uma carta extraordinária, uma igreja a qual ele podia falar das profundidades do Senhor, das riquezas do pleno entendimento.
Mas quarenta anos depois, Deus usa João para falar com esta igreja, e eu creio que nem a própria igreja em Éfeso podia examinar a si mesmo e notar esta deficiência, porque tudo parecia tão bem, tudo era tão perfeito; há tanta aprovação do Senhor a tudo o que se faz.
Mas o olho de Deus, que pode ver o que nós não vemos, que vê o coração, detectou que havia uma falha. Algo tinha começado a decair, que ainda não tem grandes efeitos; mas o dia em que começamos a perder isso, começamos a cair. Essa é a importância que tem o fato de que Éfeso esteja em primeiro lugar. O Senhor está nos dizendo que por aqui começa a decadência, a ruína da igreja - quando começamos a abandonar o primeiro amor.