ÁGUAS VIVAS
Para a proclamação do Evangelho e a edificação do Corpo de Cristo
Os Valdenses
A parte da história da igreja que não foi devidamente contada.
Rodrigo Abarca
Durante toda a Idade Média, numerosos grupos de irmãos se separaram da Cristandade oficial para procurar uma forma de cristianismo mais puro e apegado à simplicidade evangélica. Já vimos o alto preço que deveriam pagar muitos deles por causa da sua fidelidade à Palavra de Deus. O caminho da fé foi regado com o sangue do seu martírio.
Na Europa ocidental, cátaros e albigenses cresciam, especialmente na França e Espanha. E nos vales alpinos do norte da Itália e no sul da Suíça, prosperaram por vários séculos um grupo de irmãos de características singularmente especiais a quem a história designou com o nome de Valdenses.
Suas origens
Embora estreitamente aparentados com os albigenses, a sua origem parece remontar-se a uma época anterior. A antigüidade dos Valdenses é testemunhada por várias fontes, tanto internas como externas ao movimento, e também por algumas características muito particulares de sua fé e práticas. O inquisidor Rainero, que morreu em 1259, escreveu: "Entre todas estas seitas... a dos leonistas (leia-se Valdenses).. foi a que por mais tempo tem existido, porque alguns dizem que tem perdurado desde os tempos de Silvestre (Papa em 314-335 DC), outros, do tempo dos apóstolos". Marco Aurelio Rorenco, pároco de São Roque em Turin, em seu reconto e história dos mesmos, escreveu que os Valdenses são tão antigos que não se pode precisar o tempo de origem. Além disso, os próprios Valdenses se consideravam muito antigos e originavam a sua fé dos tempos apostólicos.
Outra evidencia a favor da sua antigüidade é a sua relativa falta de antagonismo para a cristandade oficial, diferente de outros grupos (incluindo albigenses) que se separaram dela como uma reação contra os seus enganos. Os Valdenses se caracterizavam por uma atitude mais tolerante, pois estavam dispostos a reconhecer que havia muitos homens que caminharam e ainda caminhavam com Deus ali. Por isso, mais adiante e quando entraram em negociações com os Reformadores, mostraram-se dispostos a reconhecer o que tinha de bom dentro da igreja organizada, o qual estes últimos rejeitaram completamente.
O reformador suíço Guillermo Farell se lamentava, por exemplo, da falta de rigor e concordância com as doutrinas protestantes mais duras e anticatólicas, entre os Valdenses com quem entrou em contato. Em uma de suas cartas se queixa desta "característica" que ele atribuía ao declínio espiritual do movimento, sem perceber a longa história espiritual que existia atrás dela.
Na verdade, embora seja impossível precisar o seu início, é provável que fossem em seu núcleo essencial um remanescente que se separou da cristandade oficial rejeitando a união da igreja e o estado, depois da ascensão de Constantino em 311 DC (por ex: os novacianos). Alguns deles puderam ter emigrado para os remotos e isolados vales alpinos, onde conservaram intactas por muitos séculos a sua fé e pureza evangélicas, alheios a todas as controvérsias e lutas posteriores. Embora mais adiante tivesse estreita comunhão com outros grupos de irmãos perseguidos.
De fato, os numerosos irmãos perseguidos, conhecidos pelos diferentes nomes que lhes eram dados por seus perseguidores, chegaram, com o tempo, a constituir um testemunho unido e de vasto alcance, fora da cristandade organizada. Graças aos escritos que os Valdenses conseguiram perdurar apesar da perseguição. E hoje podemos saber que aqueles grupos de irmãos, unidos por estreitos laços de comunhão, não eram absolutamente hereges gnósticos ou maniqueus, tal como pretendiam os que os perseguia e matavam, mas sim verdadeiros crentes ortodoxos em sua fé e bíblicos em suas práticas. Assim o Papa Gregório IX declarava: "Nós excomungamos e anatematizamos a todos os hereges, cátaros, patarinos, Homens Pobres de Lion (Valdenses), arnaldistas... e outros, qualquer que seja o nome pelo qual são conhecidos, já que têm de fato diferentes rostos, mas estão unidos por suas caldas e se reúnem no mesmo ponto, levados por sua vaidade".
Também o inquisidor Davi de Augsburgo reconhecia o fato de que em princípio as seitas, que resistiam juntas na presença dos seus inimigos, "eram uma só seita".
Pedro de Valdo
Um dos homens mais conhecidos e destacados entre eles foi Pedro de Valdo, um bem-sucedido comerciante e banqueiro de Lion que, depois de uma atenta leitura da Bíblia foi impactado profundamente pelas palavras do Senhor em Mateus 19:21, "Se quer ser perfeito, vai, vende tudo o que tem e dá-o aos pobres e terás um tesouro no céu; e depois vêm e segue-me". Em conseqüência, em 1173 deu uma boa quantidade da sua fortuna a sua esposa, repartiu o resto aos pobres e se entregou a uma vida itinerante de pregação. Outros companheiros se uniram a ele e viajaram juntos pregando do mesmo modo. Foram chamados 'Os Homens Pobres de Lion'. Em 1179 pediram ao Papa Alexandre III uma licença especial para continuar com os seus trabalhos, mas esta foi negada. Mais adiante foram inclusive excomungados.
Pedro de Valdo entrou em íntima relação com os Valdenses dos vales alpinos, e, possivelmente por essa razão, muitos historiadores o consideraram erroneamente o seu fundador, depois de observar a aparente coincidência entre o seu sobrenome 'Valdo' e o nome 'Valdenses'. Mas este suposto vem senão do costume de querer ver um fundador ou líder na origem de todo movimento espiritual. De fato, o nome 'Valdenses' parece derivar-se melhor do francês 'Vallois' (pessoas dos vales), que aparece em muitos manuscritos anteriores a Pedro de Valdo.
No entanto, De Valdo chegou a ser considerado como um dos seus apóstolos pelos mesmos Valdenses, a quem ajudou a sair do relativo isolamento em que se encontravam para lhes dar um notável impulso missionário. Realizou numerosas viagens e espalhou a fé em muitos países. Assim, diversas congregações de irmãos floresceram por toda a Europa ocidental, e se converteram em refúgio de outros irmãos perseguidos, tais como albigenses e cátaros.
Pedro de Valdo morreu provavelmente na Boêmia no ano de 1217, onde trabalhou ardentemente para semear a semente do Evangelho, que floresceria mais tarde entre os Irmãos Unidos e João Huss.
Fé e práticas
Os Valdenses reconheciam na Escritura a única autoridade final e definitiva para sua fé e práticas. Criam na justificação pela fé e rejeitavam as obras meritórias como fonte de salvação. Em 1212 um grupo de 500 Valdenses de várias nacionalidades foram detidos em Estrasburgo e queimados na fogueira pela Inquisição. Então, um dos seus pastores declarou pouco antes de morrer: "Nós somos pecadores, mas não é a nossa fé a que nos faz tais; tampouco somos culpados da blasfêmia pela qual somos acusados sem razão; mas esperamos o perdão dos nossos pecados, e isto sem a ajuda do homem, e tampouco através dos méritos ou de nossas obras".
Além da Escritura não sustentavam nenhum credo ou confissão de fé particular. Apesar disso, conseguiram conservar quase intactas a sua fé e as suas práticas ao longo de vários séculos; o qual prova de passagem que o melhor remédio contra a heresia e o engano é a espiritualidade apoiada em uma profunda fidelidade e apego à Escritura.
Tinham, em particular, a mais alta avaliação pelas palavras e obras do Senhor Jesus Cristo nos Evangelhos. A sua meta principal era seguir a Cristo, guardando as suas palavras e imitando o seu exemplo. Não davam muita importância ao conhecimento meramente teológico e mental da verdade, pois insistiam que isto só podia ser entendido por meio da luz que o Espírito Santo concede ao coração daqueles que obedecem as palavras de Deus. Da mesma maneira, colocavam em um lugar central da sua vida os ensinos do Sermão do Monte, e as consideravam como uma regra de vida para todos os filhos de Deus.
Além disso, rejeitaram as disputas doutrinarias como infrutíferas, e aceitavam os ensinos dos homens de Deus de toda época e lugar, caso conformassem à Escritura. O seu maior interesse estava em uma espiritualidade real e prática.
O inquisidor Passau disse a respeito deles: "As pessoas podem conhecê-los por seus costumes e suas conversações. Ordenados e moderados evitam o orgulho nas vestes, que não são de tecidos baratos nem luxuosos. Não se metem em negócios, a fim de não verem-se expostos a mentir, a jurar nem enganar. Como obreiros vivem do trabalho das suas mãos. Os seus próprios mestres são tecelões ou sapateiros. Não acumulam riquezas e se contentam com o necessário. São castos, sobre tudo os lioneses, e moderados em suas comidas. Não freqüentam os botequins nem os bailes, porque não amam essa classe de frivolidades. Procuram não zangar-se. Sempre trabalham e, no entanto, acham tempo para estudar e ensinar. São conhecidos também por suas conversações que são ao mesmo tempo sábias e discretas; fogem da maledicência e se abstêm de conversas vãs e zombadoras, assim como da mentira. Não juram e nem sequer dizem 'é verdade', ou 'certamente', porque para eles isso equivale a jurar".
Quanto à ordem da igreja, não tinham nenhuma classe de organização centralizada, nem hierarquia superior. As suas assembléias eram dirigidas por anciões ou presbíteros a quem chamava 'Barbas'. Celebravam juntos a Ceia do Senhor, sem excluir a nenhum crente dela.
Também reconheciam a existência de um ministério apostólico extra local e itinerante. Os apóstolos Valdenses viajavam continuamente entre as igrejas para ensinar, encorajar e ganhar novos convertidos. Não possuíam bens econômicos nem famílias, já que as suas vidas estavam em contínuo perigo e aflição. As suas necessidades eram supridas pelos irmãos, quem os tinha na maior estima e reconhecimento. Viajavam de dois em dois, sempre um mais velho com um mais jovem como aprendiz. Muitos tinham conhecimentos de medicina para ajudar os necessitados. Também havia entre eles homens altamente educados e eruditos. Freqüentemente as pessoas os chamavam 'Amigos de Deus' devido a sua profunda espiritualidade e simplicidade. Pedro de Valdo, como vimos, foi um deles.
Perseguições e martírios
Apesar do seu relativo e tranqüilo isolamento, as constantes atividades missionárias dos seus apóstolos atraíram finalmente para si a atenção e o ódio da cristandade organizada. Os numerosos santos perseguidos em outras partes encontravam refúgio em suas assembléias, que se tinham espalhado por vários países da Europa. Este fato muito em breve atraiu sobre eles o olhar implacável dos inquisidores.
Em 1192, alarmado pelo crescente número dos Valdenses na Espanha, o Rei Alfonso de Aragón emitiu um decreto contra eles nos seguintes termos: "Ordenamos a todo valdense que, já que estão excomungados da santa igreja, inimigos declarados deste reino, têm que abandoná-los, e igualmente a outros estados dos nossos domínios. Em virtude desta ordem, qualquer que a partir de hoje receber em sua casa os mencionados Valdenses, assistir os seus perniciosos discursos, dar-lhes mantimentos, atrairá por isso a indignação do Deus todo-poderoso e a nossa; os seus bens serão confiscados sem apelação, e será castigado como culpado do crime de lesa-majestade... Além disso, qualquer nobre ou plebeu que encontre dentro dos nossos estados a um destes miseráveis, saiba que se os ultrajar, maltratá-los e os perseguir, não fará com isto nada que não nos seja agradável". Muitos irmãos sofreram o martírio durante a perseguição que desencadeou a partir do decreto real.
Mais adiante, em 1380, um emissário da igreja oficial foi enviado para ocupar-se com eles nos vales de Piamonte. Durante os próximos 30 anos, 230 irmãos foram queimados na fogueira e seus bens repartidos entre os seus perseguidores. A perseguição se agravou em 1400 e, então, muitas mulheres e crianças procuraram refúgio nas altas montanhas. Ali a maior parte deles morreu de fome e frio. Em 1486 se emitiu uma carta pontifícia em oposição a eles e os vales foram invadidos por um exército de 8000 soldados de Archidiácono de Cremona, cujo objetivo era extirpar os hereges. Mas esta vez os pacíficos camponeses Valdenses tomaram as armas para defender-se, por isso o sangrento e desigual conflito se estendeu por quase 100 anos. A resistência dos irmãos foi então tão heróica, que receberam o nome de Israel dos Alpes'.
Quando começou a Reforma, os exércitos da igreja organizada aproveitaram para tomar vingança contra os Valdenses, e arrasaram literalmente várias das suas aldeias e povos. Em Provenza, no sul da França, floresciam 30 aldeias Valdenses que tinham começado a fazer contato com os líderes da Reforma. Inteirados, os seus inimigos convenceram mediante ardis e mentiras o rei da França, Francisco I. Pressionado pelo Cardeal Tournon, ordenou que todos os Valdenses fossem exterminados (19 de janeiro de 1545). Foi enviado um exército contra eles, que, depois de sete semanas de matanças, terminou com a vida de cerca de 3 a 4 mil homens e mulheres. A brutalidade e o horror se estenderam pela região. 22 aldeias ficaram totalmente destruídas. Os poucos sobreviventes foram enviados para servir de remadores nas galeras por toda a vida e apenas um reduzido número conseguiu escapar para a Suíça.
Considerações finais
Apesar de tudo, os Valdenses, diferente dos outros grupos perseguidos, sobreviveram. Nos dias da Reforma muitos passaram a formar parte das filas protestantes, enquanto que outros se uniram a assim chamada Reforma Radical dos Anabatistas. Junto com eles sobreviveram importantes escritos que nos ajudam a entender a fé daqueles irmãos cujos testemunhos foram calados pelo martírio, tais como os cátaros e albigenses, com quem os Valdenses se encontravam estreitamente unidos. E por eles aprendemos que um remanescente fiel lutou, sofreu e morreu por Cristo durante vários séculos de escuridão e apostasia, quando parecia que a fé bíblica tinha desaparecido da terra. E agora um quadro inteiramente diferente surge diante dos nossos olhos. Não se tratavam de hereges, mas sim de verdadeiros irmãos e irmãs em Cristo.
Aqui e lá, em todas as partes da Europa onde homens e mulheres fiéis buscavam o Senhor, a luz da sua palavra resplandecia e um testemunho se levantava no meio da escuridão. Mas o inimigo que enfrentavam era formidável, ardiloso e cruel. As suas armas preferidas eram a difamação e o martírio. Diante delas, todos os seus esforços pareciam destinados ao fracasso e a aniquilação. As fogueiras se multiplicavam e os horrores pareciam não ter fim. No entanto, a sua fé sobreviveu e prevaleceu através de toda aquela imensa maré de malignidade que ameaçou inundá-los por completo.
E a luz alçou no final daquela época de trevas ainda invicta e resplandecente. Desta maneira, junto a albigenses e cátaros e outros cujo testemunho foi silenciado e apagado da história, os Valdenses mantiveram erguido a chama e a fizeram chegar até os nossos dias, para falar por todos os irmãos cujo invencível testemunho de fé e amor por Cristo creram ter feito calar para sempre; e nos dizer que em todos eles brilhou de maneira clara e singular a luz invencível de Cristo e o seu Evangelho eterno, no meio da adversidade mais implacável. Por isso, o seu legado espiritual resulta imperecível.
"Ouvi uma voz do céu que me dizia: Escreve: Bem-aventurados os mortos que desde agora morrem no Senhor. Sim, diz o Espírito, descansarão dos seus trabalhos, porque as suas obras com eles seguem" (Ap. 14:13).