ÁGUAS VIVAS
Para a proclamação do Evangelho e a edificação do Corpo de Cristo
Os Cátaros e Albigenses
A parte da história da Igreja que não foi devidamente contada.
Rodrigo Abarca
História e ficção
Possivelmente nenhum grupo de crentes tenha sido objeto de tanta especulação como os albigenses ou cátaros. Na atualidade, com o ressurgimento do esoterismo, tem sido escrito numerosos livros e novelas onde pretendem 'resgatar' o verdadeiro legado dos cátaros e os seus ensinos. E, seguindo as várias e duvidosas declarações dos seus perseguidores e inquisidores, os associam em forma extemporânea com os gnósticos do princípio da era cristã (Séculos II e III).
Existem, inclusive, documentos onde os inquisidores atribuem aos cátaros confissões do tipo gnóstico copiadas letra por letra do livro "Contra Heresias", escrito pelo Ireneo de Lyon no final do século II, sem incomodar-se em trocar ou adaptar os seus parágrafos.
Por esta razão, diante da evidente falta de objetividade e a inegável parcialidade dos documentos que sobreviveram aos cátaros, muitos historiadores seculares se abstêm de promulgar qualquer juízo histórico e preferem manter silêncio. Outros, no entanto, especulam sem apoio histórico, e criam as mais fantásticas teorias sobre a sua origem e crenças.
No entanto, quando estudamos em paralelo a história de bogomiles, cátaros e valdenses, descobrimos que, de fato, existia uma fluida e constante comunhão entre estes grupos, o qual não poderia ter ocorrido se alguns deles tivessem sido gnósticos ou maniqueus. Dos valdenses se preservaram numerosos documentos que provam, sem nenhuma dúvida, o caráter evangélico e escritural das suas crenças. E é um fato que, para os inquisidores da sua época, os valdenses, cátaros e albigenses, eram uma mesma coisa. Distintos nomes dados a idênticos irmãos, dependendo do lugar e da ocasião, pois, devemos lembrar que eles recusavam tomar qualquer nome sobre si, com exceção de "cristãos" ou "irmãos". Com certeza, é possível identificar a persistência de algumas heresias gnósticas, disseminadas aqui e lá em algumas seitas medievais, as que, no entanto, não podem ser associadas sem mais nem menos aos cátaros e albigenses. Além disso, devemos lembrar que no período apostólico e pós-apostólico muitas heresias gnósticas se desenvolveram à beira das igrejas de Cristo, tal como o mesmo apóstolo João advertiu em sua Primeira Carta.
A causa da heresia
A presença do engano e o engano nunca estão muito longe de qualquer desenvolvimento verdadeiramente espiritual. Isto não nos deve assombrar. As igrejas de Cristo, ao colocar-se sob a autoridade da Escritura e do Espírito Santo, evitando qualquer uniformidade e organização exterior, dependem exclusivamente do Senhor para o seu êxito e continuidade. Não existe entre elas nenhum credo exterior, rígido e uniforme, vigiado e defendido por alguma instituição humana. Pois sua persistência diante de Deus não pode depender da sua adesão a uma ortodoxia fria e morta, mas sim do contato vivo com a sua Cabeça, que é Cristo. Só esse contato pode livrá-las do engano e da deformação.
As heresias gnósticas surgiram no estreito contato com a fé bíblica, pois formam parte da estratégia de Satanás para confundir e apartar à igreja de Cristo, sua cabeça. De fato, em Colossos já tinham aparecido os primeiros sinais, ainda nos dias do apóstolo Paulo. E o mesmo se pode constatar nas cartas às sete igrejas de Apocalipse. No entanto, a resposta de Paulo e João não foi nem remotamente um chamado à perseguição, a difamação e a tortura dos hereges, como ocorreria mais tarde com a cristandade organizada, mas sim uma exposição mais ampla e aprofundada de Cristo, a Verdade, com claridade e autoridade espiritual. Só isto é suficiente para desbaratar os planos do diabo e salvar os irmãos da confusão e do engano. E, obviamente, nada mais pode ser.
Por isso, ao longo da história dos irmãos esquecidos, encontraremos sempre, lado a lado com a fé bíblica, sempre distinta, algumas crenças heréticas e distorcidas. Este fato, unido à ilimitada ambição da cristandade organizada por ser considerada a única e verdadeira "igreja de Cristo", que a levou a perseguir infatigavelmente os cristãos dissidentes que não reconheciam a sua autoridade 'oficial', deformando e destruindo o registro quase completo de sua passagem pela história, teve êxito em fazer de muitos daqueles valentes irmãos, "hereges", ainda aos olhos de outros sinceros irmãos que vieram depois. Esta é a trágica história daqueles mártires que corajosamente levantaram o estandarte de Cristo na hora mais obscura da fé.
Indagando nas origens
A origem dos cátaros e albigenses permanecem ainda em mistério. O mais provável é que fossem fruto da conjunção de vários fatores. Em primeiro lugar, existiam disseminados pela Europa ocidental pequenos grupos de crentes que se separaram da cristandade organizada no tempo de Constantino, entre os quais os mais conhecidos foram os novacianos, quem também foram conhecidos com o nome de cátaros ou 'puros' (gr. cataroi). Por outro lado, durante o início da Idade Média, a corrupção generalizada de uma grande parte da cristandade levou irmãos sinceros a apartar-se dos seus males e abusos. Entre esses irmãos se destacaram homens de grande zelo espiritual, que denunciaram abertamente os males da cristandade e ganharam um considerável número de seguidores para uma fé mais bíblica e singela, entre os quais se destacam Pedro de Bruys e Henrique de Cluny. Além disso, existiu uma contínua corrente migratória de irmãos que eram perseguidos no oriente (paulicianos e bogomiles), que, ao chegarem ao ocidente entraram em contato com as igrejas dos cátaros, albigenses e valdenses.
Todos estes fatores ajudam a explicar o surgimento de uma poderosa corrente espiritual durante a Alta Idade Média (Séculos X ao XV), conformada por numerosos grupos de crentes que se apartaram decididamente do cristianismo oficial do seu tempo. Foram conhecidos por muitos nomes: cátaros, albigenses, valdenses, petrobrusianos, patarinos, etc. E, embora existisse entre todos eles uma estreita comunhão e inter-relação, o nome de cátaros e albigenses se aplicaram melhor aos grupos de irmãos que floresceram no sul da França e norte da Espanha. O nome valdenses se aplicou em especial àqueles irmãos que se desenvolveram nos vales do norte da Itália e Suíça, e deles queríamos nos ocupar em um artigo posterior.
O nome 'cátaro', aplicado aos irmãos, parece derivar do costume dos seus pregadores itinerantes de venderem todas as suas propriedades e se fazerem assim "perfeitos" para seguir o Senhor e pregar o evangelho, tomando literalmente o conselho do Senhor (Mateus 19:21). Não obstante, este não era um costume generalizado entre os irmãos, pois a maioria deles permaneciam em seus trabalhos, ofícios e famílias. Por outro lado, o termo 'albigense' apareceu logo em meados do século XII, na cidade francesa de Albi, onde um grupo de irmãos foram queimados na fogueira sob a acusação de heresia maniqueista (embora isto não pôde ser provado). A partir de então, acostumaram a associar os irmãos do sul da França com a 'heresia de Albi', e dali o nome, 'albigenses'.
Neste artigo vamos nos enfocar especialmente naqueles irmãos que foram conhecidos como cátaros e albigenses. Entre as pessoas comuns foram chamados normalmente 'os Homens Bons', em reconhecimento ao seu caráter santo e espiritual, que contrastava notavelmente com o clero da cristandade da sua época.
Líderes inspirados
Já mencionamos que entre os fatores que explicam o surgimento destas companhias de irmãos está o ministério de alguns notáveis líderes espirituais, como Pedro de Bruys e Henrique de Cluny.
O primeiro, Pedro de Bruys, viajou infatigavelmente por mais de vinte anos, percorrendo diversas províncias da França: em Delfinado, Provença, Languedoque e Gasconia. Multidões de pessoas assistiam as suas pregações em que denunciava abertamente o uso de imagens, especialmente da cruz, a veneração a Maria, os sacramentos, e o batismo de meninos, como costumes contrários à Escritura. Para escutá-lo, as pessoas deixavam os serviços religiosos e se reuniam em qualquer ponto onde ele estivesse. Como também não reconhecia a autoridade da Igreja organizada, foi açoitado e finalmente detido em 1116 DC. Foi queimado publicamente na praça de Saint Gilles nesse mesmo ano. Não obstante, os seus seguidores continuaram com a sua obra e com o tempo se uniram ao resto dos irmãos perseguidos.
Henrique de Cluny continuou com a obra de Pedro de Bruys, de quem foi discípulo. Este era monge e diácono do famoso monastério de Cluny. Possuía uma grande capacidade de oratória e um aspecto físico imponente. Mas era, além disso, um homem extraordinariamente devoto e inflamado de zelo espiritual. Suas pregações atraíam milhares de pessoas, e produziam centenas de conversões, entre elas, as de alguns reconhecidos pecadores, que mudavam radicalmente as suas vidas. O avivamento que ele ajudou a acender se estendeu rapidamente por todo o sul até o meridional da França.
Os líderes da igreja organizada se encontravam intimidados e até aterrorizados diante do poder da sua pregação, e não se atreviam a fazer nada contra. Foi tão grande o seu impacto nessas regiões que grande parte dos templos e monastérios ficaram abandonados.
Finalmente, Bernardo de Clarvaux, o homem mais poderoso da Europa, foi chamado para detê-lo. Este era um homem de caráter santo e devoto, cujos hinos em honra a Cristo são lembrados até hoje. No entanto, neste assunto atuou com todo o zelo da cristandade oficial, pois considerava Henrique o pior dos hereges, um demônio saído do próprio inferno. E com respeito aos irmãos, quem se negava a reconhecer a sua identidade com homem algum, inclusive com Henrique de Cluny ou Pedro de Bruys, queixava-se: "Inquiram deles o nome do autor da sua seita e não a atribuirão a ninguém. Que heresia há, que, entre os homens não tenha o seu próprio heresiarca?... Mas, por que sobrenome ou por qual título arrolam eles a estes hereges? Porque a sua heresia não se derivou do homem, nem tampouco a receberam de um homem". Sua conclusão foi que, consequentemente, tinham recebido o seu ensino dos demônios!
Henrique se viu forçado a fugir de Bernardo, e continuou com o seu infatigável trabalho, até que foi finalmente preso e condenado a um destino desconhecido, talvez ser emparedado vivo, ou a pena de morte, em Toulouse. Os irmãos, não obstante, continuaram adiante com o seu valente testemunho e passaram a formar parte daqueles grupos de irmãos perseguidos, conhecidos por seus inimigos como cátaros e albigenses.
A cruzada contra os albigenses
O importante despertar espiritual daqueles anos entre os irmãos, teve o seu epicentro na região conhecida como o Meridional da França, especialmente em Languedoque. Ali multidões de homens e mulheres de toda classe e condição, incluindo nobres e bispos do clero, somaram-se às filas dos irmãos, e as suas congregações cresceram em um número alarmante aos olhos da hierarquia da cristandade. Em 1167 foi realizada uma conferência de mestres que congregou irmãos de todas as partes da Europa, inclusive de Constantinopla. Ali estavam os paulicianos, cátaros, albigenses, valdenses, bogomiles, reunidos simplesmente como irmãos, sem aceitar nenhum dos apelidos que os seus caluniadores lhes colocavam. Relataram do avanço da obra em lugares tão distantes como a Romênia, Bulgária e Dalmácia. E este fato nos ajuda a visualizar a amplitude e alcance do despertar espiritual que eles protagonizaram naqueles anos.
Finalmente, o Papa Inocêncio III decidiu acabar por completo com os 'hereges', depois de fracassar em suas tentativas de convencer, mediante os seus legados, aos albigenses, pois estes se negaram a reconhecer outra autoridade além das Escrituras, e à cristandade organizada como a "verdadeira noiva de Cristo". Tentaram, então, convencer o conde de Provença e outros governadores das províncias do sul da França para que o apoiassem em seus intentos de aniquilação dos "hereges". No entanto, frente à resistência de suas pretensões, convocou uma cruzada de extermínio contra os albigenses e as províncias do Meriodional francês. Nessa região, devido à influência dos irmãos, desenvolveu-se a civilização mais rica e próspera da Europa.
Centenas de milhares se uniram à cruzada convocada pelo Papa, atraídos pelas riquezas que ficariam a mercê da pilhagem e da devastação. Liderada pelo terrível Simón de Monfort, a cruzada contra os albigenses devastou o sul da França até reduzi-lo a mais completa desolação. Um após o outro, os pacíficos povos do sul foram tomados e todos os seus habitantes passados ao fio da espada. Em Minerva, Monfort encontrou 140 irmãos, que negaram a abnegar-se de sua fé, por isso foram entregues às chamas de uma grande fogueira que ele mesmo preparou no centro do povo. Em Beziers, vendo rodeada a cidade e compreendendo que toda resistência seria inútil, o conde Rogelio, junto com o bispo, saiu para pedir clemência para as mulheres e meninos e ainda para aqueles que não eram 'hereges', pois nem todos nela eram albigenses. A resposta de Simón de Monfort foi: "Matem a todos. Deus reconhecerá os seus".
A sangrenta cruzada se estendeu por cerca de vinte anos, até devastar totalmente o país. Em 1211 caiu Albi e em 1221, Toulouse e Avinhon. Seus habitantes tiveram a mesma sorte de todos os outros, e foram passados ao fio da espada.
Centenas de milhares de irmãos morreram, pela guerra ou queimados na fogueira. No entanto, os poucos que conseguiram sobreviver, fugiram para diferentes países levando consigo a sua fé e testemunho. Não obstante, a cristandade oficial não retrocedeu em seu esforço por destruir 'a heresia albigense'. No Concílio de Toulouse, em 1229 foi criada a Inquisição, com o fim de continuar a perseguição em cada recanto da Europa. E a Inquisição completou a obra inconclusa da cruzada contra as províncias do Meridional francês. Deste modo, a civilização de Provença foi extinta por completo.
Apesar de tudo, a fé dos irmãos não morreu. Em qualquer lugar que fossem, tornaram a levantar o testemunho de Jesus Cristo. Por toda a Europa, numerosos irmãos saíam da cristandade organizada, e aqui e acolá tornavam a aparecer, para em seguida ocultar-se, durante os terríveis séculos em que a Inquisição exerceu o seu império. Até que por fim, com o advento da Reforma, saíram novamente à luz, e se encontravam em centenas de milhares, dispostos a escrever um novo capítulo de sua heróica história, encontrando-se unidos à própria Reforma, ou tomando parte da reforma mais radical, com o nome de anabatistas.