Os Paulicianos

A parte da história da Igreja que não foi devidamente contada.

Rodrigo Abarca

A história das igrejas que se separaram da corrente principal do cristianismo organizado, tem na Armênia e na Ásia Menor os seus mais valentes representantes nos assim chamados «Paulicianos». Perseguidos durante séculos até seu quase completo extermínio, o pouco que sabemos deles nos chegou através do testemunho prejulgado e inclusive mal intencionado de seus perseguidores, e um livro descrito por eles, recentemente encontrado.

Como vimos anteriormente, a solitária existência de alguma classe de cristianismo verdadeiro resultou sempre intolerável para a cristandade organizada, pois o contraste entre esta e a pureza espiritual daqueles grupos de crentes perseguidos, manifestava a sua ruína espiritual e moral. E também colocava em interdição suas pretensões de ser a «única igreja verdadeira». Por isso, não só se dedicou a perseguir e matar todos os crentes que discordavam de suas práticas e não se submetiam ao seu domínio, mas também a deturpar, envilecer e destruir sua memória com perversas e absurdas acusações de heresia e maldade.

Por certo, detrás de tanta hostilidade não descobrimos outra coisa senão o mesmo dragão de Apocalipse 12, cuja ira contra os santos que retêm o testemunho de Jesus Cristo manifesta as mais cruéis perseguições contra eles.

Este é o contexto em que se desenvolve a história dos assim chamados «Paulicianos», que floresceu com maior intensidade entre os séculos VII e IX D.C., nas regiões orientais da Armênia, no monte Ararat e ainda mais à frente do rio Eufrates, embora a sua origem, de acordo com alguns historiadores, pode ser esboçado inclusive até o período apostólico. Eles mesmos afirmavam ser parte da «santa igreja apostólica e universal de Jesus Cristo», e só se chamavam a si mesmos «cristãos» ou «irmãos» e diziam descender das antigas igrejas apostólicas.

Se isto é ou não verdade em um sentido temporário, tem menos importância que sua veracidade espiritual. Pois estes irmãos procuraram manter-se fielmente dentro do ensino apostólico do Novo Testamento. De fato, devido a seu grande amor e respeito pelas Escrituras, e em especial pelos escritos do apóstolo Paulo, foram provavelmente chamados «Paulicianos» por seus perseguidores. E por esta causa, encontraram-se em conflito com a maior parte da cristandade oficial de seu tempo.

A partir da Escritura, resistiam firmemente a união da igreja e o estado, e viam nela a fonte de muitos dos males da cristandade. Igualmente, opunham-se também à adoração de imagens, o culto a Maria, o batismo de crianças, e a autoridade eclesiástica centralizada e hierarquizada do sistema episcopal. Suas igrejas eram dirigidas por anciões de provado caráter espiritual, e não possuíam nenhuma hierarquia de controle centralizado. Existiam também mestres itinerantes que viajavam extensamente entre as igrejas para instruí-las e fortalecê-las. Homens de caráter apostólico cujos nomes ainda é lembrado devido à grande influência que exerceram nos seus dias.

A comunhão destas igrejas era de caráter eminentemente espiritual e não estava apoiada em um credo doutrinal bem definido e admitido por todas. Não estavam tão interessadas no rigor doutrinal, mas sim no amor, na comunhão e na experiência cristã genuína e prática. Bem se poderia dizer que eram cristãos «predogmáticos», no sentido de que se desenvolveram alheios a todas as controvérsias doutrinais que agitaram amargamente as águas da cristandade organizada. Por isso, não cabe esperar deles definições dogmáticas precisas e acabadas (1), a não ser um inconfundível sabor evangélico e bíblico nos poucos escritos que sobreviveram deles.

Entretanto, isto se encontra a anos luz das acusações de heresia que receberam de seus perseguidores. De fato, debaixo dessa óptica dogmática e intransigente, também os grandes pais da igreja antiga, que tanto trabalharam pelo «desenvolvimento do dogma», podem ser suspeitos de heresia ao ser confrontados extemporaneamente com os credos de uma cristandade posterior a seu tempo. Se os credos tiverem algum valor, derivam de sua fidelidade à Escritura, e igualmente, não têm a autoridade final desta última. São como sinais no caminho que nos indicam os caminhos que não devemos tomar. Algo muito distinto é fazer deles lanças e espadas afiadas para perseguir, acusar e condenar a outros crentes, tal como tragicamente ocorreu na história da cristandade.

Por certo, como já se viu em outros casos, a acusação principal contra eles foi a de maniqueísmo, pois esta acusação, uma vez provada, sofria a pena de morte na lei romana desse tempo. Não obstante, conforme consta nos mesmos testemunhos de seus executores, eles sempre resistiram essa acusação como uma calúnia, e se declararam fiéis discípulos de Cristo. Além disso, isto é muito mais coerente com o grande amor e fidelidade que professavam fazer da Escritura a única fonte de autoridade, o qual resulta totalmente incompatível com sua suposta adesão ao maniqueísmo. Finalmente, um de seus poucos escritos que sobreviveram à destruição, chamado «A Chave da Verdade» não mostra nenhum vestígio de maniqueísmo em seu conteúdo, mas sim uma fé essencialmente bíblica.

Embora não conhecemos o nome do autor do referido livro, sabemos sim que houve entre eles alguns proeminentes ministros da Palavra, como já mencionamos, que derramaram suas vidas por causa do Senhor Jesus Cristo, cuja vida e testemunho merecem ser recordados.

Constantino Silvano

Como temos dito, a história deste grupo de irmãos começa a ser conhecida a partir do século VII. Nesse tempo, perto do ano 653 D.C., um homem chamado Constantino recebeu em sua casa um viajante armênio, que por gratidão lhe deixou um valioso presente: os manuscritos dos quatro evangelhos e as epístolas paulinas. De fato, muitos quiseram ver em Constantino o fundador dos Paulicianos, mas eles sempre alegaram uma origem muito mais antiga. Enquanto lia aqueles escritos, a luz entrou em seu coração e se converteu em uma valente testemunha de Cristo. Muito em breve, um grupo de crentes se reunia com ele para estudar as Escrituras fora da tutela da igreja organizada. Constantino foi logo recebido entre os irmãos como um dotado mestre e viajou extensamente pregando o evangelho e ensinando nas igrejas. Trocou seu nome pelo de Silvano, devido a sua admiração pelo apóstolo Paulo; estabeleceu seu lar na Kibossa e dali viajou para o leste seguindo o curso do rio Eufrates e para o oeste, através da Ásia Menor. Seu ministério se estendeu por mais de 30 anos.

Finalmente, devido a seu extenso trabalho e influência, o imperador romano do oriente (Bizancio) emitiu um decreto contra ele. No ano 684 foi capturado por um oficial do império chamado Simeón, e foi apedrejado até morrer. Entretanto, Simeón ficou tão impressionado com o que viu e escutou durante a detenção e a execução de Constantino Silvano, que, depois de sua volta a corte de Bizancio, não pôde encontrar paz nem tranqüilidade para a sua alma. Finalmente, depois de dois anos de luta interior, decidiu abandonar tudo e retornar ao lugar onde tinha morrido Constantino. Ali se entregou ao Senhor, foi batizado, e continuou a obra que Constantino tinha realizado. Rapidamente se uniu ao exército dos mártires, pois também foi capturado e queimado publicamente junto a muitos outros irmãos. Não obstante, isto não deteve o resto dos crentes, e sua obra continuou expandindo-se.

Sergio

Depois de Constantino Silvano, outro homem de considerável influencia entre os irmãos foi Sergio, quem exerceu seu ministério entre os anos 800 aos 834. Também se converteu ao Senhor após ler atentamente a Escritura, particularmente os evangelhos. A partir dali, começou um extenso ministério por cartas, além de suas viagens. Ricas cartas circularam com grande autoridade entre as igrejas e ajudaram a curar as divisões que estavam surgindo entre elas. Viajou extensamente do leste ao oeste, até que, conforme nos diz: «meus joelhos estiveram fatigados». Embora sempre trabalhou como carpinteiro, serviu a inumeráveis irmãos no ministério da palavra por 34 anos, visitando praticamente todas as regiões das terras altas da Ásia Central. Sua vida acabou sob o machado do verdugo imperial no ano 834 D.C.

A luta contra a idolatria

Uma das maiores batalha entre os irmãos e a igreja organizada foi travada em torno do assunto das imagens. Diferentes imperadores bizantinos se declararam sucessivamente a favor ou contrários ao uso de imagens. Como os irmãos resistiam abertamente o uso e a veneração destas, sua situação também flutuava de acordo com a posição que tomava o imperador da vez. Sob o reinado de Leão III (660-740 D.C.), quem publicou um decreto imperial contra as imagens, foram protegidos pelo imperador, e lhes permitiu exercer sua fé sem perseguições. Inclusive, alguns deles foram deslocados pelo mesmo filho do imperador até os Bálcãs, onde iniciaram uma extensa e frutífera obra.

Não obstante, esta política foi variando com os seguintes imperadores. A morte de Teófilo (842 d. do C.), que se opunha às imagens, subiu ao trono a imperatriz Teodora, ardente defensora destas, e quem iniciou a mais terrível e sangrenta de todas as perseguições contra os paulicianos. Sob suas ordens foram decapitados, afogados e queimados milhares de homens, mulheres e meninos. Calcula-se que durante esse tempo (842-867 d. do C.) perto de 100.000 irmãos perderam a vida.

As terríveis perseguições e torturas que tiveram que suportar inclinaram, infelizmente, alguns irmãos a tomar as armas e unir-se aos muçulmanos para lutar contra o império que cruelmente os perseguia. Este fato marcou o começo da decadência espiritual entre eles. Pois toda vez que, na história, os crentes tomaram a espada para defender-se, colheram ruína e destruição. A advertência do Senhor a Pedro é determinante: «Torna sua espada em seu lugar; porque todos os que tomam a espada, pela espada também perecerão».

Apesar de tudo, devemos recomendar a fidelidade desses irmãos, conhecidos como paulicianos, quem perto de 300 anos mantiveram no alto o estandarte da fé e a pureza evangélica, no meio das mais cruéis difamações e perseguições. Resistiram valentemente e pacificamente todos os esforços que, ao longo desses anos, foi feito para destruí-los.

Embora nos séculos posteriores, quando sua condição espiritual tinha declinado, alguns tomaram o caminho da luta armada contra o império, muitos deles continuaram fiéis e se espalharam para o oeste, levando consigo sua mensagem de simplicidade e pureza evangélica, como fiéis seguidores de Cristo. Ali, no ocidente, retornamos a encontrar com o nome de Bogomiles, ou amigos de Deus, dispostos a escrever um novo capítulo de heroísmo e fé.

A chave da verdade

Uma última palavra deve ser dita sobre o único livro importante que sobreviveu dos paulicianos, chamado «A Chave da Verdade». Foi descoberto no final do século 19. Trata-se de uma série de conselhos, escritos para as igrejas por um autor desconhecido. Embora seus ensinos não devem ser tomadas como um credo dogmático, são, em geral, uma clara exposição de sua fé e prática. Nelas há um inconfundível sabor evangélico. Resistem ao batismo de crianças e declara que estes devem ser criados por seus pais na fé e na piedade segundo o conselho dos anciões da igreja. Isto deve ser acompanhado por orações e a leitura da Escritura.

Também, ao falar sobre a ordenação de anciões, declara que estes devem ser de perfeita sabedoria, amor, prudência, gentileza, humildade, coragem e eloqüência. Devia perguntar-lhes se estavam dispostos a beber do cálice do Senhor e ser batizados com o seu batismo, e sua resposta devia ser uma clara demonstração dos perigos que estes homens deviam enfrentar por causa do Senhor e do seu rebanho: «Tomo sobre mim os açoites, prisões, torturas, opróbrios, cruzes, aflições e tribulações, e toda tentação do mundo, que nosso Senhor e Intercessor da igreja apostólica e universal tomou sobre si mesmo, aceitando-os com amor. Também eu, um indigno servo do Jesus Cristo, com grande amor e imediata vontade, tomo sobre mim tudo isto, até a hora de minha morte».

Estas palavras demonstram o valente espírito de fé com que estes homens e mulheres se entregavam ao Senhor Jesus Cristo, conscientes de que podiam selar seu testemunho com a coroa do martírio, tal como na verdade ocorreu com centenas de milhares deles.

Este livro retira também qualquer dúvida sobre seu suposto gnosticismo ou maniqueísmo. Nenhum sinal dessas heresias aparece nele. Possivelmente a única passagem controvertida é o que descreve o batismo do Senhor, onde diz que nesse ato, aos 30 anos de idade, «Nosso Senhor recebeu o senhorio, o sumo sacerdócio, e o reino... e foi cheio da divindade». Estas afirmações não parecem negar a divindade do Senhor antes de seu batismo (2), mas sim melhor enfatizar que a partir de então, começou a manifestar esses atributos divinos, que até então permaneceram escondidos. No restante, a passagem não afirma nada mais a respeito, já que sua intenção não é teológica mas sim prática. Seu propósito parece ser a fundamentação do batismo em pessoas conscientes de seus atos, em oposição ao batismo de crianças.

Os assim chamados paulicianos representavam uma fé mais prática que especulativa, mais bíblica que dogmática, que se desenvolveu fora das definições e controvérsias dogmáticas da cristandade organizada de seu tempo. Por isso, seu testemunho nos fala ao contrário de um cristianismo mais antigo e original que procurou manter-se ardentemente fiel aos ensinos apostólicos sobre Cristo e sua igreja, contra tudo e apesar de tudo, até tingir-se por completo com o sangue de suas mártires.

1 As controvérsias doutrinarias levaram a cristandade a desenvolver uma linguagem precisa para definir os dogmas centrais da fé. Esta linguagem, freqüentemente técnica, especializada e erudita, é o fruto de séculos de discussões e controvérsias teológicas. Embora não podemos negar o seu valor e alcance ao esclarecer questões de difícil exposição, não se pode esquecer que a fé bíblica não tem essa linguagem e é muito mais singela e espiritual. De fato, podemos nos perguntar se na realidade alguma vez foi possível para todos os crentes, de qualquer época, idade e condição, entender e expor sem falhas todas as formulas dogmáticas contidas nos credos da cristandade (com a possível exceção do «símbolo dos apóstolos»). Por isso, embora possamos subscrever os credos mais antigos, não podemos fazer deles o fundamento da vida e da fé das Igrejas. Este fundamento deve ser sempre vivo e espiritual, embora careça às vezes de um preciso rigor exterior e dogmático quando se expressa ou escreve, pois, contudo, retém e comunica os fatos essenciais da revelação de Deus em Cristo segundo as Escrituras, iluminadas pelo Espírito Santo nos santos. Tal é, o nosso entendendimento, no caso dos Paulicianos.

2 Alguns pensam que os Paulicianos sustentavam uma posição adocionista, vale dizer, que Jesus foi um mero homem até que foi invadido pela divindade em seu batismo. Entretanto, isto pertence sim ao âmbito da especulação teológica da escola de Antioquia, inclinada a negar a divindade do Senhor a favor de sua humanidade, muito afastada do evidente espírito singelo e evangélico dos irmãos. Na verdade, estes parecem não haver sustentado nenhum credo dogmático em particular além da autoridade da Bíblia.

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